domingo, 22 de março de 2009

Direito Penal do Inimigo. Luiz Regis Prado.

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Entrevista
Direito Penal do Inimigo

Entrevistado
Luiz Regis Prado
Professor Titular de Direito Penal e Teoria Geral do Direito e Vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Estadual de Maringá Pós-doutor em Direito Penal pela Universidade de Zaragoza (Espanha); Pós-doutor em Direito Penal Ambiental Comparado pela Universidade Robert Schuman de Strasbourg (França); Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha); Autor de diversas obras publicadas pela editora RT. www.regisprado.com



Carta Forense - Para podermos entender o contexto da entrevista que desenrolará, como o senhor conceitua o Direito Penal do Inimigo?

Luiz Regis Prado - O Direito Penal do inimigo é um Direito Penal de exceção, feito regra. Trata-se de uma construção teórica fundamentada essencialmente na distinção entre cidadãos e não-cidadãos (ou inimigos) que, no âmbito dogmático, consiste na própria separação entre pessoas e não-pessoas, conduzindo à distinção entre dois pólos de regulação normativa penal, coexistentes no ordenamento jurídico: um dirigido ao cidadão e outro ao inimigo. Desse modo, de um lado, o Direito Penal do cidadão define e sanciona delitos cometidos por pessoas de forma incidental, ou seja, delitos que representam um abuso nas relações sociais de que participam. Assim, o cidadão oferece a chamada "segurança cognitiva mínima", ou seja, a garantia de que se submetem ao preceito normativo e, por isso, são chamados a restaurar a sua vigência por meio da imposição sancionatória. Por essa razão, esses indivíduos continuam a ser considerados pessoas e, portanto, cidadãos aptos a fruir de direitos e garantias assegurados a todos que partilhem desse status. O Direito Penal do inimigo, de seu turno, dirige-se a indivíduos que, por seu comportamento, externam uma pretensão de ruptura ou destruição da ordem normativa vigente e, portanto, perdem o status de pessoa e cidadão, submetendo-se a um verdadeiro Direito Penal de exceção, cujas sanções têm por finalidade primordial não mais a restauração da vigência normativa, mas assegurar a própria existência da sociedade em face desses indivíduos. O Direito Penal do inimigo tem como uma de suas marcantes características o combate a perigos, por isso representa, em muitos casos, uma antecipação de punibilidade, na qual o "inimigo" é interceptado em um estado inicial, apenas pela periculosidade que pode ostentar em relação à sociedade. Para ele, não é mais o homem (= pessoa de "carne e osso") o centro de todo o Direito, mas sim o sistema, puramente sócionormativo.


CF - O que se define por "inimigos"?

LRP - O "inimigo" é considerado o "irreconciliavelmente oposto", isto é, aquele que apresenta um distanciamento duradouro e não incidental das regras de Direito, verificado pelo seu comportamento pessoal, profissão, vida econômica, etc. As relações sociais desses indivíduos desenvolvem-se à margem do Direito e, por isso, não oferecem a segurança cognitiva mínima necessária para que sejam considerados como pessoas. Essa condição de inimigo radica, sobretudo, em sua desconsideração enquanto pessoa, conceito que, segundo essa teoria, tem um viés normativo. Assim, pessoa não é um dado natural, inerente a todo e qualquer indivíduo, mas está relacionado ao destino das expectativas normativas. É dizer: a atribuição dessa condição social - pessoa - a um indivíduo depende do grau de satisfação das expectativas normativas que ele é capaz de prestar. O inimigo, portanto, seria incapaz de atender o mínimo de expectativas normativas, pois, em realidade, ele não só refuta a legitimidade do ordenamento jurídico, como busca a sua destruição.

CF - O que muda no tratamento de um do cidadão normal e um "inimigo"?

LRP - Do ponto de vista dogmático, como antes afirmado, o inimigo não é considerado como pessoa para o ordenamento jurídico porque não oferece um grau mínimo de satisfação das expectativas normativas. Isso implica a supressão de uma série de garantias individuais - de cunho material, processual ou de execução - que, além de inocuizá-los, tem por escopo facilitar o combate a determinadas formas de criminalidade como, por exemplo, o terrorismo e a criminalidade organizada. Nesse sentido, busca-se eliminar certos grupos de indivíduos, o que denota traços característicos de um Direito Penal autoritário, afastado dos princípios que regem o Direito Penal do fato, caracterizando-se, portanto, como verdadeiro Direito Penal do autor.



CF - Dentro desta teoria há fundamentos filosóficos?

LRP - Sim. Há fundamentos filosóficos e muito mais antigos. As raízes históricas desse pensamento remontam, sobretudo, a certas concepções da filosofia moderna, como as de Rousseau, Fitche, e, especialmente de Hobbes, cuja contribuição foi decisiva para emprestar ao Direito Penal do inimigo os conceitos de "estado de natureza", "contrato" e "direito de guerra" contra os inimigos. Portanto, dessa construção de Jakobs não emerge tanta novidade; houve, na verdade, uma sistematização de idéias próprias da filosofia moderna e de um pensamento autoritário bem mais antigo.

CF - Dentro da teoria do direito penal, quais são as características mais marcantes?



LRP - Pode-se mencionar como traços marcantes dessa construção, a antecipação de punibilidade (combate a perigos), buscando-se atingir momentos anteriores à realização do fato delituoso propriamente dito (punem-se inclusive os atos preparatórios); não visa à proteção de bens jurídicos, mas a estabilidade de expectativas normativas (ordenamento penal sistêmico e meramente formal); o processo é quase sumário, desprovido das garantias fundamentais. Com relação às penas, verifica-se um notável incremento das margens penais e flagrante desproporcionalidade, entre outras características.

CF - Quais são os principais traços na sua aplicação, em contraposição ao Direito Penal do cidadão?

LRP - As manifestações do Direito Penal do inimigo incidem sobre diferentes instâncias do sistema penal. Há dispositivos de natureza material, processual e de execução penal, que enunciam características dessa doutrina, vigentes em Estados Democráticos de Direito. Essa construção relaciona-se com a utilização excessiva da lei penal, que passa a ser a prima ratio e não a ultima ratio, o emprego desmedido de medidas emergenciais simbólicas e negativas, a flexibilização excessiva de princípios penais liberais e supressão de garantias. Prevalece a finalidade de prevenção especial negativa da sanção penal, utilizada para neutralizar ou segregar o indivíduo que, segundo essa concepção, jamais terá condições de oferecer a garantia mínima de satisfação das expectativas normativas. O Direito Penal do inimigo é construído a partir da pessoa do delinqüente e não do fato delituoso, como ocorre com o Direito Penal do cidadão.

CF - Com as garantias processuais suspensas ou revogadas para estes casos, como se chega a entrega jurisdicional?

LRP - Em princípio, a entrega da prestação jurisdicional ocorre da mesma forma.

CF - Muitos estudiosos citam como exemplo prático do Direito Penal do Inimigo o que aconteceu na Alemanha Nazista, o senhor concorda?

LRP - Em que pese essa construção não tenha sido desenvolvida na época da propagação do pensamento nazista, não resta dúvida que a grande maioria das leis penais e processuais elaboradas e aplicadas durante a vigência do regime nazista na Alemanha apresenta traços típicos do Direito Penal do inimigo. As normas penais então em vigor eram de caráter eminentemente segregacionista e autoritário.

CF - Existem hoje países que adotam este sistema?

LRP - Em muitos ordenamentos jurídicos, inclusive de Estados democráticos e liberais, há dispositivos próprios do Direito Penal do inimigo. É importante destacar que essas esferas de regulação - Direito Penal do inimigo e do cidadão - não são neutras ou puras, ou seja, são opostos matizáveis que não compreendem unicamente dispositivos de "guerra", como no caso do primeiro, ou só de "diálogo", como ocorre no segundo. Em outras palavras, dentro dessa esfera de regulação denominada Direito Penal do inimigo pode haver dispositivos identificáveis como próprios do Direito Penal do cidadão e vice-versa.

CF - Podemos dizer que o Direito Penal Militar brasileiro, em tempo de guerra, é nossa forma mais próxima de Direito Penal do Inimigo?

LRP - Não. Em tempo de guerra, o Direito Penal militar constitui-se basicamente de leis excepcionais ou temporárias, aplicáveis àquele momento excepcional por que passa o País e estão diretamente relacionadas a esse fato. O Direito Penal do inimigo, ao contrário, é duradouro, não diz respeito a quaisquer fatos específicos e se centra na pessoa do autor do delito.



CF - Enfim, o senhor consegue enxergar alguma coisa boa na teoria? Qual sua opinião pessoal?

LRP - O Direito Penal compatível com um Estado Democrático de Direito deve ser liberal, democrático e garantista. Logo, uma teoria que se fundamente na separação entre pessoas e não-pessoas, a partir de um conceito meramente normativo, descartando flagrantemente o aspecto ontológico da condição de ser responsável e capaz de se portar conforme ou contra o preceito normativo inerente a todo ser humano, criando, dessa forma, uma "pessoa normativizada", não possui qualquer reflexo positivo. De outro lado, essa discussão não teria relevância em um Estado totalitário, em que o Direito Penal como um todo é voltado para o combate aos "inimigos" do Estado. Todavia, não se pode afirmar que todas as formas de delinqüência devam ser tratadas da mesma forma. O Estado pode utilizar os próprios mecanismos para possibilitar persecução e punição mais eficazes a determinadas formas de criminalidade, sem rechaçar os preceitos lhe fundamentam, por meio do fortalecimento de medidas de prevenção, aparelhamento e modernização de instituições já existentes, dificultar a concessão de certos benefícios processuais e de execução penal com base em requisitos objetivos, sem que isso implique a supressão de tais benefícios, etc.







Jornal Carta Forense, terça-feira, 3 de março de 2009
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domingo, 8 de março de 2009

A nova lei 11.719/08 e seus efeitos sobre o rito dos juizados especiais criminais

A nova lei 11.719/08 e seus efeitos sobre o rito dos juizados especiais criminais
Ricardo Sidi

Advogado criminalista e pós-graduado em Direito Penal Empresarial pela PUC/RJ

SIDI, Ricardo. A nova Lei 11.719/08 e seus efeitos sobre o rito dos juizados especiais criminais. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 193, p. 12-13, dez. 2008.


A Lei 11.719/08 trouxe significativas alterações aos ritos ordinário e sumário, sendo a intenção deste artigo demonstrar que, também em relação ao procedimento da Lei 9.099/95, a nova lei trouxe dispositivos relevantes, que merecem atenção da doutrina.

Como se trata de norma recentíssima, ainda não existe, por óbvio, consenso doutrinário ou jurisprudencial acerca de todos os seus efeitos, o que só costuma ocorrer depois de numerosas contribuições acadêmicas.

Na nova redação do artigo 394 do CPP estão definidas as hipóteses em que incidirão os ritos ordinário e sumário(1), constando, em seu § 1º, inciso III, que será aplicado o rito sumaríssimo “para as infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da lei”, numa redação que, à primeira vista, parece ter conservado intacto o rito da Lei 9.099/95, que já o intitulava de sumaríssimo.

Ocorre que o § 4º do mesmo artigo 394 dispõe o seguinte:

“§4º . As disposições dos arts. 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código.”

Verifica-se claramente que o trecho “todos os procedimentos penais de primeiro grau ainda que não regulados neste Código” alcança o rito das infrações de menor potencial ofensivo (Lei 9.099/95) no que se refere a processos em trâmite no primeiro grau.

Não obstante ser a Lei 11.719/08 uma norma geral e a Lei 9.099/95 especial, o dispositivo acima citado, da forma como veio redigido, constitui exceção ao princípio Lex posterior generalis non derogat legi priori speciali. Segundo Carlos Maximiliano, o referido princípio pressupõe “não poder o aparecimento da norma ampla causar, só por si, sem mais nada, a queda da autoridade da prescrição especial vigente”(2), o que não ocorre no caso em tela onde as expressões “todos” e “ainda que não regulados neste Código” mostram com clareza o sentido da nova lei.

Interessa à presente análise, portanto, verificar o que dispõem os artigos 395 a 398(3), ou melhor, 395 a 397, já que o 398 está revogado.

A novidade dos ditos artigos, em síntese, foi a introdução da resposta escrita após o recebimento da denúncia (art. 396), com a subseqüente possibilidade de o juiz absolver sumariamente o réu (art. 397), além da menção, no art. 395, de causas de rejeição da denúncia, já previstas anteriormente no agora revogado art. 43 do CPP, e que passam a contar com o acréscimo de hipóteses e expressões como “falta de justa causa” e denúncia “manifestamente inepta”, que, na realidade, já integravam a ordem jurídica, devido a antiga e pacífica posição jurisprudencial e doutrinária.

Frise-se que a criação de uma resposta escrita do réu após o recebimento da denúncia, sucedida de uma oportunidade dada ao magistrado para dar fim à ação penal, representa um excepcional avanço, especialmente porque, antes disso, era inviável, segundo posição majoritária, o “trancamento” ou extinção da ação penal pelo próprio juiz do caso antes da sentença. Ou seja, imperava o entendimento de que, uma vez recebida a denúncia, não podia o magistrado reconsiderar a decisão que iniciou a ação penal, sendo necessária uma ordem de habeas corpus emanada de instância superior(4).

Quanto à existência de efeitos da nova Lei 11.719/08 sobre o procedimento dos Juizados, é possível que parte da doutrina venha a entender que o caput do art. 396 (“nos procedimentos ordinário e sumário...”) teria restringido os institutos da resposta escrita e absolvição sumária exclusivamente aos procedimentos ordinário e sumário, mas, se assim fosse, seria letra morta o § 4º do art. 394, que foi categórico ao estender sua aplicabilidade a “todos os procedimentos penais de primeiro grau ainda que não regulados neste Código”.

Fosse outro o sentido da recém editada norma, não haveria motivo para que o § 4º do art. 394 fizesse referência às “disposições dos arts. 395 a 398”, já que a resposta escrita e a absolvição sumária ocupam nada menos do que três dos quatro artigos ali mencionados (396, 396-A e 397), lembrando-se que o 398 foi revogado.

Afinal, conforme sustenta Carlos Maximiliano, “precisa ser inteligentemente compreendido e aplicado com alguma cautela o preceito clássico: ‘a disposição geral não revoga a especial’. Pode a regra geral ser concebida de modo que exclua qualquer exceção; ou enumerar taxativamente as únicas exceções que admite; ou, finalmente, criar um sistema completo e diferente do que decorre das normas positivas anteriores: nesses casos o poder eliminatório do preceito geral recente abrange também as disposições especiais antigas”(5).

Maria Helena Diniz sustenta que “a lex posterior apenas será aplicada se o legislador teve o propósito de afastar a anterior”(6), e, pela forma como está redigido o novo art. 394, § 4º do CPP, não se consegue vislumbrar outro propósito.

O detalhe a exigir maior atenção, e que pode ser causa de divergências doutrinárias ou questionamentos quanto à constitucionalidade da Lei 11.719/08, é que o art. 81 da Lei 9.099/95 prevê o recebimento da denúncia em audiência, após manifestação oral do defensor pugnando por sua rejeição:

“Art. 81. Aberta a audiência, será dada a palavra ao defensor para responder à acusação, após o que o juiz receberá, ou não, a denúncia ou queixa; havendo recebimento, serão ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e defesa, interrogando-se a seguir o acusado, se presente, passando-se imediatamente aos debates orais e à prolação da sentença.”

Se a nova lei prevê, no art. 396, que, “oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 dias”, verifica-se uma derrogação ao art. 81 da Lei 9.099/95.

Trata-se de derrogação, e não ab-rogação ou revogação, porque o rito dos artigos 396 a 397 do CPP não chega a atingir os atos de instrução e julgamento propriamente ditos, conservando-se intacta a vigência da parte final do art. 81 da Lei 9.099/95, a saber, “... serão ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e defesa, interrogando-se a seguir o acusado, se presente, passando-se imediatamente aos debates orais e à prolação da sentença”.

E “a abolição das disposições anteriores se dará nos limites da incompatibilidade” entre a norma nova e a antiga, ou seja, “se em um mesmo trecho existe uma parte conciliável e outra não, continua em vigor a primeira”(7).

Segundo a interpretação aqui exposta, portanto, sofreu modificação o procedimento adotado nos Juizados entre o momento do oferecimento de denúncia e o início efetivo da colheita da prova, ficando suprimida a manifestação oral da defesa antes do recebimento da peça acusatória e o juízo de prelibação exercido na própria audiência.

É que, evidentemente, não se pode simplesmente, “inserir a força” ou “encaixar” o rito previsto nos arts. 395 a 397 no procedimento da Lei 9.099/95 mantendo-o intacto em todas as suas demais etapas processuais, eis que algumas são desarmônicas e inconciliáveis com a nova lei. Nesse sentido, não se poderia manter a manifestação oral da defesa e o subseqüente recebimento ou rejeição da denúncia em audiência, e, ao mesmo tempo, promover a citação para resposta escrita em 10 dias caso restasse recebida a inicial acusatória, sob pena de se desdobrar a audiência do art. 81 da Lei 9.099/95 em duas. Esta opção, portanto, exigiria adicionar ao rito dos Juizados Criminais mais uma audiência, não prevista em nenhuma das duas leis.

Assim, tendo em vista a inconciliabilidade e desarmonia do novo procedimento dos arts. 395 a 397 do CPP com a primeira parte do rito do art. 81 da Lei 9.099/95, é de se concluir que este restou derrogado pela Lei 11.719/08.

A partir de agora, portanto, segundo a interpretação aqui sustentada, o juiz apreciará a denúncia em seu gabinete, de forma mais cautelosa e fundamentada, e seguirá o rito dos artigos 395 a 397 do CPP.

Ao analisar a denúncia, vislumbrando o magistrado alguma das hipóteses do art. 395, rejeita-la-á de plano. Se entender por rece­bê-la, fará isso em seu gabinete, em data anterior à AIJ, determinando, em seguida, a citação do réu para apresentar resposta escrita em 10 dias (art. 396). Apresentada esta, o juiz verificará se ocorrem as circunstâncias para absolvição sumária (art. 397), após o que ou absolverá o réu, ou designará audiência de instrução, que se iniciará já pelas oitivas, exatamente na ordem prevista na parte final do art. 81 da Lei 9.099/95.

É certo que a instituição da resposta escrita pela Lei 11.719/08, em se tratando de nova oportunidade de manifestação da defesa técnica, é algo em evidente consonância com a garantia constitucional da ampla defesa e contraditório (art. 5º, LV), bem como com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), já que se passa a permitir ao juiz da causa fazer cessar imediatamente o constrangimento ilegal em caso de ação penal indevida.

Por outro lado, a dilatação do procedimento dos Juizados com um novo ato, com prazo de 10 dias, e, ainda por cima, escrito e formal, pode ser vista como afronta à exigência constitucional de oralidade e celeridade (art. 98, I, CR: “procedimentos oral e sumaríssimo”).

Ocorre que, analisadas tais mudanças sob o prisma das garantias individuais, verifica-se que a imposição de uma defesa escrita, elaborada por advogado constituído ou defensor nomeado pelo juiz (art. 396-A, § 2º) veio cumprir uma missão extremamente necessária nos Juizados, onde a noção de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual, celeridade, conciliação e transação (art. 2º, Lei 9.099/95) vinha induzindo o indivíduo acusado a não buscar a assistência técnica na fase preliminar, levando-o, muitas vezes, a admitir ônus e restrições em sua liberdade sem a necessária justa causa, num país em que a Constituição Federal “lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado” (STF - HC 82.354/PR - min. Sepúlveda Pertence - DJ 24/9/04)(8).

E, mesmo em relação à efetividade da defesa técnica na própria audiência de instrução e julgamento nos Juizados, onde a presença do defensor do réu já era obrigatória, o dia-a-dia forense demonstra que os jurisdicionados dependentes da Defensoria Pública costumam ter ali, na própria audiência, o seu primeiro contato com o defensor. Agora, com a Lei 11.719/08, a exigência de uma peça de defesa escrita, cuja falta acarretará nulidade absoluta(9), exigirá o encontro prévio entre defensor e acusado, fazendo com que a imprescindível “assistência de advogado” (art. 5º, LXIII, CRFB) seja mais do que um mero simulacro.

Nesse sentido, o raciocínio aqui exposto aponta para a derrogação do art. 81 da Lei 9.099/95 pela Lei 11.719/08, não se vislumbrando inconstitucionalidade nesta, já que a doutrina garantista recomenda que, diante de conflitos entre normas constitucionais (art. 98, I versus art. 5º, LV e LXIII), a balança penda em favor da liberdade e das garantias individuais, porquanto estas últimas ostentam o status constitucional de cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV).

Notas

(1) “Art. 394. O procedimento será comum ou especial. § 1º O procedimento comum será ordinário, sumário ou sumaríssimo: I - ordinário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade; II - sumário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada seja inferior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade; III - sumaríssimo, para as infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da lei.”

(2) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª ed., Rio de Janeiro: Forense: 2006, p. 294.

(3) “Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I - for manifestamente inepta; II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.” “Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias. Parágrafo único. No caso de citação por edital, o prazo para a defesa começará a fluir a partir do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.” “Art. 396-A. Na resposta, o acusado poderá argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário. §1º A exceção será processada em apartado, nos termos dos arts. 95 a 112 deste Código. §2º Não apresentada a resposta no prazo legal, ou se o acusado, citado, não constituir defensor, o juiz nomeará defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por 10 (dez) dias.” “Art. 397. Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou IV - extinta a punibilidade do agente. Art. 398. Revogado.”

(4) STJ, HC 86.903/DF, min. Napoleão Nunes, 5ª T. - j. 28/5/2008, DJ 30/6/2008; STJ, EDecl no REsp. 173.395/PA, min. Fernando Gonçalves, 6ª T - j. 27/6/2000, DJ 2/10/2000; e STF, RHC 51423/PA, min. Aliomar Baleeiro, Pleno, j. 17/10/1973, DJ 2/1/1974.

(5) MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 294.

(6) DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 35.

(7) MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 293.

(8) Este acórdão, que inaugurou uma linha jurisprudencial firme na Suprema Corte acerca do direito do investigado acessar autos de inquérito, deixou claro que, não obstante a não incidência de contraditório e ampla defesa na fase inquisitorial, o investigado é sujeito de direitos, devendo-se lhe assegurar garantias como a assistência de advogado e proteção contra a auto-incriminação (art. 5º, LXIII, CRFB).

(9) Diferentemente da controvérsia acerca do art. 514 do CPP (nulidade relativa ou absoluta), a “resposta escrita” da nova Lei 11.719/08 constitui peça a ser apresentada após o recebimento da denúncia, portanto, quando já em curso a ação penal, momento em que a incidência das garantias de ampla defesa e contraditório é inquestionável.

Ricardo Sidi
Advogado criminalista e pós-graduado em Direito Penal Empresarial pela PUC/RJ

O interesse de agir enquanto condição legitimante da ação penal.

O interesse de agir enquanto condição legitimante da ação penal: sobre a possibilidade do pedido de arquivamento do inquérito policial ou das peças de investigação quando cabível o perdão judicial
Domingos Barroso da Costa

Bacharel em Direito pela UFMG; especialista em Criminologia pelo Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas/Acadepol-MG e em Direito Público, pela Unigranrio/Praetorium; mestrando em Psicologia pela PUC/Minas

COSTA, Domingos Barroso da. O interesse de agir enquanto condição legitimante da ação penal: sobre a possibilidade do pedido de arquivamento do inquérito policial ou das peças de investigação quando cabível o perdão judicial. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 195, p. 13-14, fev. 2009.


1. Introdução: da supremacia das formas à instrumentalidade do processo

Superada a miopia do positivismo jurídico, contemporaneamente se sabe da impossibilidade de dissociar o Direito dos fenômenos que marcam a evolução da sociedade. A lei já não é bastante em si e a justiça não mais se dobra à primazia das formas. Em suma, legalidade e legitimidade são conceitos que não podem ser confundidos, emergindo esta não mais da cega obediência a formalidades, mas da adequação entre a lei — sua criação, interpretação e aplicação — e os valores que fundam e evoluem com determinado corpo social, refletindo os interesses da coletividade que o compõe.

O papel de mera estrutura ordenadora ficou no passado, cabendo hodiernamente ao Direito a condição de ativo instrumento de transformação social. Por um lado, perdem força as formas, tão absolutas enquanto permaneceu a crença numa neutralidade passiva dos que criavam e aplicavam o Direito; por outro, ganha a busca pela justiça e sua mais equânime distribuição.

A emergência de um novo constitucionalismo anunciou o progressivo declínio do positivismo a partir da segunda metade do século passado. Em razão do surgimento de novas demandas sociais, a rigidez das leis e o engessamento de seus intérpretes acabaram suplantados pela regência plástica dos princípios, normas que se mostram capazes de conferir equilíbrio e unicidade ao ordenamento jurídico, por possibilitarem uma aplicação proporcional da lei à realidade concreta, harmonizando o Direito com a evolução e complexidade da sociedade dita pós-moderna. Desabando a estrutura vertical que se apoiava em mera legalidade, a fixidez totalitária da gaiola de ferro(1) de métodos que marcou a Modernidade acabou sendo rompida por transformações drásticas na tecitura social, cujos laços não mais se fundam e sustentam nas autoridades incontestes de outrora. Nessa dinâmica, com o aumento quantitativo e qualitativo das demandas por cidadania e respeito aos direitos fundamentais(2), somente se pode concluir que a contenção das individualidades horizontalmente situadas depende agora de um reconhecimento da legitimidade das normas que lhes são impostas.

Observa-se, pois, que as regras deram lugar aos princípios, num movimento de superação da forma pelo conteúdo, o que bem se evidencia no caráter instrumental que contemporaneamente se confere ao processo.

Assim como o Direito deve servir à realização dos valores da cultura de que irradia, de modo a assegurar seu equilíbrio e manutenção, devem as formas processuais ser instrumento de efetivação dos direitos materiais. Não mais se admite que o conteúdo se perca em razão de vícios formais, do que decorre a atual relativização das causas de nulidade do processo, tão caras aos positivistas.

No que concerne a seus reflexos sobre o direito processual, a evolução narrada produziu efeitos em todas suas vertentes. E, na condição de protagonistas dessa dinâmica de adequação do valor conferido às formas, emergem princípios como o da instrumentalidade e efetividade do processo, neste abrangido o princípio da celeridade, positivado como direito fundamental no art. 5º, LXXVIII, da CF.

Contudo, de se destacar que o presente estudo detém-se na importância da plena aplicação desses princípios ao processo penal, mais especificamente no que concerne ao interesse de agir, enquanto condição legitimante da ação penal. Neste ponto do debate, cabe afirmar que a condição legitimante que se atribui ao interesse de agir deve-se justamente ao fato de em seu âmbito serem analisadas a necessidade e a utilidade do processo, tendo em vista os fins que lhe confere o Direito.

Não há como se aplicar uma pena criminal sem o devido processo, razão pela qual, em sede de interesse de agir, sua necessidade é presumida. Contudo, no âmbito da utilidade, muito ainda há para se discutir, mesmo porque é de sua constatação que se conclui pela legitimidade da submissão de alguém à persecução penal em juízo.

A esse respeito, ensina Eugênio Pacelli:

“No âmbito específico do processo penal [...] desloca-se para o interesse de agir a preocupação com a efetividade do processo, de modo a ser possível afirmar que este, enquanto instrumento da jurisdição, deve apresentar, em juízo prévio e necessariamente anterior, um mínimo de viabilidade de satisfação futura da pretensão que informa o seu conteúdo. É dizer: sob perspectiva de sua efetividade, o processo deve mostrar-se, desde a sua instauração, apto a realizar os diversos escopos da jurisdição, isto é, revelar-se útil. Por isso, fala-se em interesse-utilidade” (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 6ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pp. 84/85).

Como cediço, serve o processo penal ao exercício da coerção punitiva pelo Estado (jus puniendi), que detém seu monopólio, tratando-se de verdadeira — e indispensável, como afirmado — garantia do indivíduo contra eventuais abusos por parte do poder público. Sabe-se, ainda, que a forma por excelência do exercício dessa coerção dá-se com a aplicação da pena privativa de liberdade, à qual a doutrina atribui finalidades de prevenção especial e geral, tanto positiva quanto negativa.

Porém, considerando-se o esvaziamento dos objetivos de inclusão que se vinculavam à pena privativa de liberdade — especialmente observado a partir da década de 80 do século passado —, aqui se toma essa sanção penal tão-somente em seu viés retributivo. Conforme bem apontado por Loïc Wacquant, os ideais de reintegração social foram substituídos por uma “nova penalogia”, que mais diz de uma “reciclagem de detritos sociais”(3).

Deve-se considerar, portanto, que a análise do interesse de agir como condição da ação no processo penal passa necessariamente pelo exame, no caso concreto, da necessidade e, principalmente, da utilidade desse instrumento para a aplicação, ao autor do crime, de uma pena que represente efetiva retribuição pela lesão causada à vítima e à sociedade.

2. Sobre a falta de interesse de agir – ou ilegitimidade do processo – nos casos em que cabível o perdão judicial

Expostas as considerações introdutórias, cabe agora tratar da situação específica a cuja abordagem aqui se dedica, qual seja, da possibilidade de o Ministério Público, enquanto titular da ação penal, nos casos em que verificar cabível o perdão judicial, deixar de oferecer denúncia, requerendo o arquivamento do caderno investigatório por falta de interesse-utilidade.

Nada mais plausível e viável, fundando-se tal possibilidade em argumentos análogos àqueles nos quais se arrima a possibilidade do pedido de arquivamento com base na conclusão acerca de uma futura prescrição a partir da pena ideal. Em ambas as hipóteses — no caso do perdão judicial e da prescrição pela pena ideal —, fica “demonstrada, de plano, a inutilidade da atividade processual correspondente”(4).

Afinal, como claramente define o art. 121, § 5º, do CP, tratando da hipótese de homicídio culposo, o perdão judicial corresponde à possibilidade de o juiz “deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”(5). Ou seja, diz o dispositivo da inutilidade da pena estatal diante de uma conduta cujas consequências, por si só, já representem castigo ou sanção suficiente a seu agente provocador, de gravidade tal que torna até mesmo desnecessária a intervenção punitiva do Estado. E, se inútil a pena, inútil o processo enquanto instrumento que se destina a viabilizar sua aplicação(6).

O que se deve destacar é que aqui se filia à posição de Damásio de Jesus, segundo o qual o perdão judicial não se trata de mera faculdade do juiz, mas, sim, de “Direito Penal público subjetivo de liberdade”(7). Nessa esteira, pode-se concluir que assiste ao promotor de justiça, enquanto titular da ação penal, a possibilidade de requerer o arquivamento do inquérito policial ou das peças informativas em constatando que as circunstâncias que animam o caso concreto se subsumem àquelas em que se permite o perdão judicial, com base na ausência de interesse-utilidade de agir. Não concordando o juiz, poderá se socorrer do previsto na última parte do art. 28 do CPP e, assim, remeter o inquérito ou as peças de investigação ao procurador-geral de Justiça, que “oferecerá a denúncia, designará outro órgão para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender”.

Entendimentos contrários ao acima exposto terminam por afrontar princípios processuais como, dentre outros, o da instrumentalidade e da efetividade. De certa forma, pode-se concluir que processos deflagrados em condições ensejadoras do perdão judicial — ou seja, em que não há interesse de agir devido à inutilidade do processo — são natimortos. Por essa razão, acabam determinando gastos desnecessários para o Estado e maior sobrecarga da justiça penal, já tão criticada em razão de um alardeado acúmulo de processos. Ante tal consideração, pode-se, em última instância, afirmar que a tese ora desenvolvida contribui reflexamente para a efetiva realização do disposto e programado no art. 5º, LXXVIII, segundo o qual “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

3. Considerações finais

A crise de legitimidade atravessada pelo sistema penal reclama intervenções certas por parte dos operadores do Direito no sentido de adequar o funcionamento dessa estrutura aos princípios constitucionais e interesse público. Conforme exposto, o legalismo de formalidades absolutas já não condiciona a atuação de advogados, promotores ou juízes, aos quais hoje cabe a função maior de amoldar a lei aos ideais constitucionais e à dinâmica social, sempre visando à efetivação da justiça. O pós-positivismo deu vida à lei morta que caracterizava o positivismo jurídico, animando o Direito com um espírito transformador.

“Essa transformação da ciência jurídica, ao dar ao jurista uma tarefa de construção — e não mais de simples revelação —, confere-lhe maior dignidade e responsabilidade, já que dele se espera uma atividade essencial para dar efetividade aos planos da Constituição, ou seja, aos projetos do Estado e às aspirações da sociedade” (MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. Volume 1: Teoria Geral do Processo. São Paulo: RT, 2006, p. 46).

Se tudo é proibido, nada é proibido, motivo pelo qual o excesso de leis incriminadoras explícito ao ponto de revelar a ineficácia do sistema penal brasileiro exige uma postura crítica dos juristas, que são responsáveis pelo resgate de sua legitimidade, logo, de sua credibilidade(8). Seja pelas vias processuais, seja através da aplicação de princípios próprios ao direito material, deve-se lutar pela mínima intervenção penal, a cujos drásticos efeitos somente devam ser submetidos casos que representem violação a interesses essenciais à vida em sociedade, considerada sua condição de ultima ratio. E, dentre esses, certamente não se inclui o caso dos agentes de cujas condutas decorrem efeitos tão danosos a si próprios a ponto de tornar inútil a punição estatal(9).

Nesses moldes, retomando o fio processual da questão inicialmente proposta, fecha-se o estudo com o devido destaque à importância da apuração da utilidade do processo enquanto condicionante da legitimidade da persecutio criminis in judicio. Um processo que não é meio eficaz ao alcance dos objetivos que o justificam é inútil e, por conseguinte, jamais será legítimo. Contemporaneamente pode-se afirmar, portanto, que o interesse de agir é verdadeira condição constitucionalizante da ação penal, vez que manifesta o caráter instrumental do processo na conformação do Direito aos ideais constitucionais e à dinâmica social. Harmoniza, assim, a mútua interferência entre essas inseparáveis instâncias, caracterizando-se como uma das formas essenciais à garantia de uma sintonia entre o Direito e o compasso de evolução da sociedade.

Notas

(1) Expressão cunhada por Max Weber.

(2) YOUNG, Jock. A Sociedade Excludente: Exclusão Social, Criminalidade e Diferença na Modernidade Recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

(3) WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

(4) OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 6ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 85.

(5) Não se cuida aqui, como se pode verificar, da forma de perdão judicial de que trata a Lei nº 9807/99, em seu art. 13.

(6) DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 13ª ed., São Paulo: Malheiros, 2008.

(7) JESUS, Damásio E. de apud GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 6ª ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 774. Por esse mesmo fundamento, ainda com Damásio, acompanhado por Luiz Flávio Gomes, Maurício Antônio Ribeiro Lopes e Rogério Greco (GRECO, ob. cit., p. 774), também se entende pela extensão das hipóteses em que cabível o perdão judicial a práticas que se enquadrem nos arts. 302 e 303 do CTB. Aliás, transferindo-se a abordagem da questão para o âmbito das condições da ação — portanto, para a atuação ministerial —, torna-se até mesmo desnecessária tal colocação, pois, sob tal enfoque, dispensável seria uma expressa autorização legal para cada caso em que possível a aplicação do perdão, bastando a previsão da possibilidade de se deixar de aplicar a pena em razão de sua inutilidade, para o que bastam os moldes dispostos no art. 121, § 5º, do CP.

(8) Há quem cogite que o Brasil já tenha superado a marca de 5.000 condutas tipificadas.

(9) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas: A Perda da Legitimidade do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

Domingos Barroso da Costa
Bacharel em Direito pela UFMG; especialista em Criminologia pelo Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas/Acadepol-MG e em Direito Público, pela Unigranrio/Praetorium; mestrando em Psicologia pela PUC/Minas

Cláusula inadmissível no indulto natalino.

Cláusula inadmissível no indulto natalino
Alberto Silva Franco

Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo

FRANCO, Alberto Silva. Cláusula inadmissível no indulto natalino. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 195, p. 3, fev. 2009.


O § 4º do art. 33 da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, autoriza a aplicação de causa redutora de pena, variável entre um sexto e dois terços, quer em relação à pena privativa de liberdade, quer no tocante à pena pecuniária, aos infratores do caput e do § 1º do art. 33 do diploma legal já referido, desde que o agente, primário e de bons antecedentes, não se dedique a atividades criminosas, nem integre organização criminosa. Reunidos os requisitos especificados, não há como fugir à diminuição punitiva, que se traduz, então, num verdadeiro direito do próprio acusado. O texto legal não exclui, em momento algum, da menor incidência punitiva, o agente que tenha atuado como traficante. Sob esse ângulo, a direta remissão ao caput e ao § 1º do art. 33 da Lei 11.343/2006 significa a confirmação de que se revela absolutamente indiferente, para a causa de diminuição de pena, a categorização do réu como traficante ou não. Um e outro são, em verdade, destinatários do § 4º do art. 33.

Ora, em destoante conflito com esse entendimento, o Decreto n. 6.706, de 22 de dezembro de 2008, publicado no DOU do dia imediato, contém regra — inexistente, por sinal, no projeto de decreto formulado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) — que exige, no caso do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 que o condenado penalmente favorecido só poderá ser indultado se ficar demonstrada sua condição de não-traficante. Trata-se de cláusula que extravasa os poderes constitucionais do Presidente da República.

Antes de tudo porque o inciso XII do art. 84 da Constituição Federal, ao atribuir ao Presidente da República a competência para conceder o indulto ou a comutação de penas, não lhe outorgou, ao mesmo tempo, o poder de alargar ou de restringir, por via direta ou reflexa, tipologias penais. Destarte, a alteração de texto penal, por ato do Poder Executivo, retrata uma insuportável ofensa à estrita legalidade penal. No caso em exame, a incidência da causa de diminuição do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 não estava subordinada à prévia rotulação do agente como traficante ou não. Os requisitos exigíveis eram outros e, com fundamento neles, a autoridade judiciária poderia ou não efetuar a diminuição punitiva. Não tem, portanto, pertinência negar-se, agora, o indulto ou a comutação de pena, sob o argumento de que a conduta típica do condenado configurava a prática da mercancia.

Depois porque, muito embora possam ser excluídos do decreto de indulto ou de comutação determinados tipos penais, força é convir que esse decreto não pode trazer distinções no interior de uma só e mesma figura criminosa. No Decreto 6.706/2008, os benefícios penais não alcançaram expressamente os crimes hediondos e assemelhados, mas, nessa última categoria, se abriu uma exceção, em relação ao crime do tráfico ilícito de droga, para efeito de admissão do indulto ou da comutação, nas hipóteses dos §§ 2º a 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006. No caso em tela, interessa apenas a hipótese do § 4º porque exclusivamente a ela foi aderida a cláusula desde que a conduta típica não tenha configurado a prática da mercancia. Assim, abriu-se uma nova exceção no raio circunscrito de outra exceção. E esta segunda exceção objetiva separar, de forma nítida, as figuras do traficante e do não-traficante, distinção que não se incluía entre os objetivos do legislador penal na formulação do referido o § 4º. O Decreto 6.706/2008 afronta, portanto, a regra da isonomia na medida em que, para a concessão do indulto ou da comutação de penas, desiguala situações fáticas que o legislador penal não teve a preocupação de distinguir.

Além disso, é inquestionável a incidência do indulto ou da comutação na fase de execução da pena e não teria cabimento, nessa fase, a reabertura do juízo de conhecimento para efeito de verificar se o agente praticara ou não atos comprovadores de tráfico ilícito de drogas. Para aferir-se a realização de tais atos, seria mister analisar os dados probatórios, o que significaria uma total subversão do processo penal, a dano do justo processo legal. Assim, se o condenado obteve a causa redutora de pena, com base no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, não terá nenhum sentido, para efeito de concessão do indulto ou da comutação que o juiz da execução penal investigue a conduta típica do condenado para verificar se pôs em prática, ou não, atos próprios do tráfico de drogas.

Em resumo, por qualquer ângulo que se enfoque a questão, a esdrúxula cláusula desde que a conduta típica não tenha configurado a prática de mercancia é de todo inadmissível, não comportando atendimento na execução penal, por significar lesão aberta a princípios constitucionais. Destarte, nenhuma restrição, por parte do juízo da execução penal, pode ser admitida em relação a condenados favorecidos pela causa de diminuição do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006.

Alberto Silva Franco
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo