domingo, 22 de março de 2009

Direito Penal do Inimigo. Luiz Regis Prado.

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Entrevista
Direito Penal do Inimigo

Entrevistado
Luiz Regis Prado
Professor Titular de Direito Penal e Teoria Geral do Direito e Vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Estadual de Maringá Pós-doutor em Direito Penal pela Universidade de Zaragoza (Espanha); Pós-doutor em Direito Penal Ambiental Comparado pela Universidade Robert Schuman de Strasbourg (França); Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha); Autor de diversas obras publicadas pela editora RT. www.regisprado.com



Carta Forense - Para podermos entender o contexto da entrevista que desenrolará, como o senhor conceitua o Direito Penal do Inimigo?

Luiz Regis Prado - O Direito Penal do inimigo é um Direito Penal de exceção, feito regra. Trata-se de uma construção teórica fundamentada essencialmente na distinção entre cidadãos e não-cidadãos (ou inimigos) que, no âmbito dogmático, consiste na própria separação entre pessoas e não-pessoas, conduzindo à distinção entre dois pólos de regulação normativa penal, coexistentes no ordenamento jurídico: um dirigido ao cidadão e outro ao inimigo. Desse modo, de um lado, o Direito Penal do cidadão define e sanciona delitos cometidos por pessoas de forma incidental, ou seja, delitos que representam um abuso nas relações sociais de que participam. Assim, o cidadão oferece a chamada "segurança cognitiva mínima", ou seja, a garantia de que se submetem ao preceito normativo e, por isso, são chamados a restaurar a sua vigência por meio da imposição sancionatória. Por essa razão, esses indivíduos continuam a ser considerados pessoas e, portanto, cidadãos aptos a fruir de direitos e garantias assegurados a todos que partilhem desse status. O Direito Penal do inimigo, de seu turno, dirige-se a indivíduos que, por seu comportamento, externam uma pretensão de ruptura ou destruição da ordem normativa vigente e, portanto, perdem o status de pessoa e cidadão, submetendo-se a um verdadeiro Direito Penal de exceção, cujas sanções têm por finalidade primordial não mais a restauração da vigência normativa, mas assegurar a própria existência da sociedade em face desses indivíduos. O Direito Penal do inimigo tem como uma de suas marcantes características o combate a perigos, por isso representa, em muitos casos, uma antecipação de punibilidade, na qual o "inimigo" é interceptado em um estado inicial, apenas pela periculosidade que pode ostentar em relação à sociedade. Para ele, não é mais o homem (= pessoa de "carne e osso") o centro de todo o Direito, mas sim o sistema, puramente sócionormativo.


CF - O que se define por "inimigos"?

LRP - O "inimigo" é considerado o "irreconciliavelmente oposto", isto é, aquele que apresenta um distanciamento duradouro e não incidental das regras de Direito, verificado pelo seu comportamento pessoal, profissão, vida econômica, etc. As relações sociais desses indivíduos desenvolvem-se à margem do Direito e, por isso, não oferecem a segurança cognitiva mínima necessária para que sejam considerados como pessoas. Essa condição de inimigo radica, sobretudo, em sua desconsideração enquanto pessoa, conceito que, segundo essa teoria, tem um viés normativo. Assim, pessoa não é um dado natural, inerente a todo e qualquer indivíduo, mas está relacionado ao destino das expectativas normativas. É dizer: a atribuição dessa condição social - pessoa - a um indivíduo depende do grau de satisfação das expectativas normativas que ele é capaz de prestar. O inimigo, portanto, seria incapaz de atender o mínimo de expectativas normativas, pois, em realidade, ele não só refuta a legitimidade do ordenamento jurídico, como busca a sua destruição.

CF - O que muda no tratamento de um do cidadão normal e um "inimigo"?

LRP - Do ponto de vista dogmático, como antes afirmado, o inimigo não é considerado como pessoa para o ordenamento jurídico porque não oferece um grau mínimo de satisfação das expectativas normativas. Isso implica a supressão de uma série de garantias individuais - de cunho material, processual ou de execução - que, além de inocuizá-los, tem por escopo facilitar o combate a determinadas formas de criminalidade como, por exemplo, o terrorismo e a criminalidade organizada. Nesse sentido, busca-se eliminar certos grupos de indivíduos, o que denota traços característicos de um Direito Penal autoritário, afastado dos princípios que regem o Direito Penal do fato, caracterizando-se, portanto, como verdadeiro Direito Penal do autor.



CF - Dentro desta teoria há fundamentos filosóficos?

LRP - Sim. Há fundamentos filosóficos e muito mais antigos. As raízes históricas desse pensamento remontam, sobretudo, a certas concepções da filosofia moderna, como as de Rousseau, Fitche, e, especialmente de Hobbes, cuja contribuição foi decisiva para emprestar ao Direito Penal do inimigo os conceitos de "estado de natureza", "contrato" e "direito de guerra" contra os inimigos. Portanto, dessa construção de Jakobs não emerge tanta novidade; houve, na verdade, uma sistematização de idéias próprias da filosofia moderna e de um pensamento autoritário bem mais antigo.

CF - Dentro da teoria do direito penal, quais são as características mais marcantes?



LRP - Pode-se mencionar como traços marcantes dessa construção, a antecipação de punibilidade (combate a perigos), buscando-se atingir momentos anteriores à realização do fato delituoso propriamente dito (punem-se inclusive os atos preparatórios); não visa à proteção de bens jurídicos, mas a estabilidade de expectativas normativas (ordenamento penal sistêmico e meramente formal); o processo é quase sumário, desprovido das garantias fundamentais. Com relação às penas, verifica-se um notável incremento das margens penais e flagrante desproporcionalidade, entre outras características.

CF - Quais são os principais traços na sua aplicação, em contraposição ao Direito Penal do cidadão?

LRP - As manifestações do Direito Penal do inimigo incidem sobre diferentes instâncias do sistema penal. Há dispositivos de natureza material, processual e de execução penal, que enunciam características dessa doutrina, vigentes em Estados Democráticos de Direito. Essa construção relaciona-se com a utilização excessiva da lei penal, que passa a ser a prima ratio e não a ultima ratio, o emprego desmedido de medidas emergenciais simbólicas e negativas, a flexibilização excessiva de princípios penais liberais e supressão de garantias. Prevalece a finalidade de prevenção especial negativa da sanção penal, utilizada para neutralizar ou segregar o indivíduo que, segundo essa concepção, jamais terá condições de oferecer a garantia mínima de satisfação das expectativas normativas. O Direito Penal do inimigo é construído a partir da pessoa do delinqüente e não do fato delituoso, como ocorre com o Direito Penal do cidadão.

CF - Com as garantias processuais suspensas ou revogadas para estes casos, como se chega a entrega jurisdicional?

LRP - Em princípio, a entrega da prestação jurisdicional ocorre da mesma forma.

CF - Muitos estudiosos citam como exemplo prático do Direito Penal do Inimigo o que aconteceu na Alemanha Nazista, o senhor concorda?

LRP - Em que pese essa construção não tenha sido desenvolvida na época da propagação do pensamento nazista, não resta dúvida que a grande maioria das leis penais e processuais elaboradas e aplicadas durante a vigência do regime nazista na Alemanha apresenta traços típicos do Direito Penal do inimigo. As normas penais então em vigor eram de caráter eminentemente segregacionista e autoritário.

CF - Existem hoje países que adotam este sistema?

LRP - Em muitos ordenamentos jurídicos, inclusive de Estados democráticos e liberais, há dispositivos próprios do Direito Penal do inimigo. É importante destacar que essas esferas de regulação - Direito Penal do inimigo e do cidadão - não são neutras ou puras, ou seja, são opostos matizáveis que não compreendem unicamente dispositivos de "guerra", como no caso do primeiro, ou só de "diálogo", como ocorre no segundo. Em outras palavras, dentro dessa esfera de regulação denominada Direito Penal do inimigo pode haver dispositivos identificáveis como próprios do Direito Penal do cidadão e vice-versa.

CF - Podemos dizer que o Direito Penal Militar brasileiro, em tempo de guerra, é nossa forma mais próxima de Direito Penal do Inimigo?

LRP - Não. Em tempo de guerra, o Direito Penal militar constitui-se basicamente de leis excepcionais ou temporárias, aplicáveis àquele momento excepcional por que passa o País e estão diretamente relacionadas a esse fato. O Direito Penal do inimigo, ao contrário, é duradouro, não diz respeito a quaisquer fatos específicos e se centra na pessoa do autor do delito.



CF - Enfim, o senhor consegue enxergar alguma coisa boa na teoria? Qual sua opinião pessoal?

LRP - O Direito Penal compatível com um Estado Democrático de Direito deve ser liberal, democrático e garantista. Logo, uma teoria que se fundamente na separação entre pessoas e não-pessoas, a partir de um conceito meramente normativo, descartando flagrantemente o aspecto ontológico da condição de ser responsável e capaz de se portar conforme ou contra o preceito normativo inerente a todo ser humano, criando, dessa forma, uma "pessoa normativizada", não possui qualquer reflexo positivo. De outro lado, essa discussão não teria relevância em um Estado totalitário, em que o Direito Penal como um todo é voltado para o combate aos "inimigos" do Estado. Todavia, não se pode afirmar que todas as formas de delinqüência devam ser tratadas da mesma forma. O Estado pode utilizar os próprios mecanismos para possibilitar persecução e punição mais eficazes a determinadas formas de criminalidade, sem rechaçar os preceitos lhe fundamentam, por meio do fortalecimento de medidas de prevenção, aparelhamento e modernização de instituições já existentes, dificultar a concessão de certos benefícios processuais e de execução penal com base em requisitos objetivos, sem que isso implique a supressão de tais benefícios, etc.







Jornal Carta Forense, terça-feira, 3 de março de 2009
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