RECEBIMETO DA DENÚNCIA.MOMENTO.
DANIEL RIBEIRO VAZ, PROF. DE DIREITO PENAL, PROCESSUAL PENELA, ESTÁGIO E CRIMINILOGIA DA UNIVERSIDADE TIRADENTES.
Nos debates referente a Reforma Processual Penal de 2.008 no Congresso Nacional, percebe-se que a proposta do Senado Federal no Substitutivo do Senado ao Projeto de Lei da Câmara nº 36, de 2007 (PL nº 4.207, de 2001, na Casa de origem), que “Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos à suspensão do processo, emendatio libelli, mutatio libelli e aos procedimentos, propõe a seguinte redação do art. 396, CPP:
Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.
Ao retornar à Câmara dos Deputados, o Deputado Federal Régis de Oliveira, Relator do PL assim entendeu na COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO JUSTIÇA E CIDADANIA:
Emenda nº 8: Sugerida pela Comissão composta no âmbito do Poder Judiciário e apresentada aos senadores do Grupo de Trabalho de Reforma Processual Penal. Pretende suprimir do art. 1º do PLC 36/2007, no que se refere ao caput do art. 395, do Código de Processo Penal, o termo "recebê-la-á", sob a justificativa de que o ato de recebimento da denúncia está previsto no momento descrito no artigo 399, ou seja, após a oportunidade de resposta preliminar. A redação do projeto anteciparia desnecessariamente o exame de admissibilidade da denúncia. Ocorre que instrumento que é o processo, não pode ser mais importante do que a própria relação material que se discute através dos autos. Aliás, após a EC 45, que incluiu o inciso LXXVIII ao art 5º garantindo a duração razoável do processo, mais ainda se faz importante a redação aprovada pela Câmara, pois sendo inepta de plano a denúncia ou queixa, razão não há para se mandar citar o réu e, somente após a apresentação de defesa deste, extinguir o feito. Melhor se mostra que o juiz ao analisar da denúncia ou queixa ofertada possa fulminar de plano relação processual infrutífera, pois de trabalho inútil certamente não requer o magistrado, sempre assoberbado de processos, sem contar a economia processual obtida com a interrupção inicial e imediata de um relação processual inepta a gerar qualquer tipo de benefício à sociedade. Destarte, mais afinado à nova tendência processual se mostra o texto originariamente aprovado pela Câmara, razão pela qual rejeito a modificação sugerida.
Portanto, concluindo, assim ficou a redação dos dispositivos:
Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).
Art. 399. Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).
Portanto o notório equívoco legislativo fez com que interpretações surgissem na doutrina que se arrisca a debruçar sobre o tema, onde necessário se faz a verificação do correto momento processual de recebimento da exordial imprescindível á verificação a interrupção do curso do prazo prescricional (prescrição da pretensão executória estatal), onde insere-se alguns raciocínios divergentes, sendo construída na doutrina, portanto, três entendimentos a respeito:
1º Entendimento.
Estamos diante de dois momentos onde se verifica o recebimento da exordial, ou seja, art. 396 e art. 399, ambos do CPP, interrompendo, portando o curso do prazo prescricional duas vezes. Posicionamento este minoritário.
2º Entendimento.
Alguns sustentam no sentido de que o momento processual do art. 396, CPP ocorre o real recebimento da exordial, sob a alegação de que impossível ocorrer citação sem recebimento da denúncia, portanto o juiz recebe a exordial e cita o réu para que o mesmo apresente sua resposta em 10 (dez) dias.
Este entendimento é sustentado pela doutrina majoritária, dentre eles Fernando da Costa Tourinho Filho, Guilherme de Souza Nucci, Renato Marcão, André Estefan, Eugênio Pacelli, Luiz Flávio Gomes, Andrey Borges De Mendonça, Rômulo De Andrade Moreira e Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto assim como é o entendimento fixado pelo Superior Tribunal de Justiça, ex vi :
RECEBIMENTO. DENÚNCIA. ART. 396 DO CPP.
A Lei n. 11.719/2008, como consabido, reformou o CPP, mas também instaurou, na doutrina, polêmica a respeito do momento em que se dá o recebimento da denúncia oferecida pelo MP, isso porque tanto o art. 396 quanto o art. 399 daquele codex fazem menção àquele ato processual. Contudo, melhor se mostra a corrente doutrinária majoritária no sentido de considerar como adequado ao recebimento da denúncia o momento previsto no citado art. 396: tão logo oferecida a acusação e antes mesmo da citação do acusado. Por sua vez, o art. 396-A daquele mesmo diploma legal prevê a apresentação de revigorada defesa prévia, na qual se podem argüir preliminares, realizar amplas alegações, oferecer documentos e justificações, especificar provas e arrolar testemunhas. Diante disso, se o julgador verificar não ser caso de absolvição sumária, dará prosseguimento ao feito ao designar data para audiência. Contudo, nessa fase, toda a fundamentação referente à rejeição das teses defensivas apresentadas dar-se-á de forma concisa, pois o juízo deve limitar-se à demonstração da admissibilidade da demanda instaurada sob pena de indevido prejulgamento, caso acolhido o prosseguimento do processo-crime. Daí que, no caso, a decisão ora combatida, de prosseguir no processo, apesar de sucinta, está suficientemente fundamentada. Precedente citado: HC 119.226-PR, DJe 28/9/2009. HC 138.089-SC, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 2/3/2010.
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 396-A DO CPP. LEI nº 11.719/2008. DENÚNCIA. RECEBIMENTO. MOMENTO PROCESSUAL. ART. 396 DO CPP. RESPOSTA DO ACUSADO. PRELIMINARES. MOTIVAÇÃO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. I - A par da divergência doutrinária instaurada, na linha do entendimento majoritário (Andrey Borges de Mendonça; Leandro Galluzzi dos Santos; Walter Nunes da Silva Junior; Luiz Flávio Gomes; Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto), é de se entender que o recebimento da denúncia se opera na fase do art. 396 do Código de Processo Penal. II - Apresentada resposta pelo réu nos termos do art. 396-A do mesmo diploma legal, não verificando o julgador ser o caso de absolvição sumária, dará prosseguimento ao feito, designando data para a audiência a ser realizada. III - A fundamentação referente à rejeição das teses defensivas, nesta fase, deve limitar-se à demonstração da admissibilidade da demanda instaurada, sob pena, inclusive, de indevido prejulgamento no caso de ser admitido o prosseguimento do processo-crime. IV - No caso concreto a decisão combatida está fundamentada, ainda que de forma sucinta. Ordem denegada.
Ministro so STJ Féliz Fischer, citando entendimentos doutrinários, assim dispõe:
Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró bem sintetizou a polêmica:
"Definida em quais situações o juiz deve rejeitar a denúncia ou queixa, cabe analisar qual o primeiro momento em que o juiz deverá fazê-lo ou, ao contrário, em que situação a peça acusatória deverá ser recebida. Exatamente neste ponto, a reforma do Código de Processo Penal tem causado uma grande celeuma: a contradição evidente entre o art. 396, caput, e o art. 399, posto que ambos se referem ao recebimento da denúncia, em dois momento distintos. O novo art. 396 dispõe: "Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias." (destacamos) Por sua vez, depois da resposta (art. 396-A, CPP), não sendo o caso de absolvição sumária (art. 397, CPP), o novo art. 399 dispõe: "Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente." (destacamos) Não há como coexistirem dois recebimentos da denúncia." (in "Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 76, jan-fev 2009", Editora RT)
Neste ponto, acompanho a doutrina majoritária que afirma ser o momento adequado ao recebimento da denúncia o previsto no art. 396 do CPP, portanto, tão logo oferecida a acusação, e antes da citação do acusado, ante a previsão expressa, recebê-la-á, inserta no dispositivo. Nesta senda ensina a doutrina: "Assim, uma vez oferecida a denúncia, e não vislumbrando o magistrado as hipóteses de rejeição de que trata o art. 395, ele deverá receber a peça. com todos os seus efeitos, inclusive o de interromper a prescrição." (Leandro Galluzzi dos Santos in "As reformas no processo penal - As novas Leis de 2008 e os Projetos de Reforma ". Coordenação Maria Thereza Rocha de Assis Moura, Editora RT, São Paulo: 2008, pg.323). "De toda sorte, o melhor mesmo é que, antes mesmo da resposta do acusado, haja a oportunidade para que o juiz se pronuncie, nas apenas pela rejeição como era a proposta original do Executivo, como, igualmente, se for o caso, pelo recebimento da ação penal, o que, aliás, é a regra" (Walter Nunes da Silva Junior in "Reforma Tópica do Processo Penal: inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas e principais modificações do júri", Editora Renovar, Rio de Janeiro: 2009, pg.90). Além destes: Andrey Borges de Mendonça in "Nova reforma do Código de Processo Penal: comentada artigo por artigo". São Paulo: Editora Método, 2008 p.267/268; Luiz Flávio Gomes; Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista
Pinto in "Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito ". São Paulo: Editora RT, 2008, p. 338.
3º Entendimento.
Outros defendem a tese de que este momento processual verificar-se-á apenas na fase do art. 399, CPP, pois nota-se que erroneamente o legislador (segundo a linha da Lei de Drogas e nas idéias de Ada Pelegrine Grinover, alterada pelo legislador) equivocadamente utilizar duas vezes e verbo “receber”. Um dos autores da Reforma Processual Penal, Antonio Magalhães Gomes Filho sustenta esse entendimento assim como Geraldo Prado, Paulo Rangel, Antonio Scarance Fernandes, José Fernando Gonzales, Mariângela Lopes, Cezar Roberto Bittencourt (IBCCRIM n.º 190), in fine:
O recebimento da denúncia no novo procedimento
Antonio Scarance Fernandes e Mariângela Lopes
Antonio Scarance Fernandes
Professor titular de Direito Processual Penal da USP, procurador de Justiça aposentado e coordenador do ASF –
Cursos e Eventos Mariângela Lopes
Advogada, mestre e doutoranda em Direito Processual Penal pela USP
FERNANDES, Antonio Scarance; LOPES, Mariângela. O recebimento da denúncia no novo procedimento. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 190, p. 2-3, set. 2008.
Uma das mais relevantes questões a respeito da reforma do Código de Processo Penal refere-se à dificuldade em se interpretar os dispositivos que prevêem dois momentos para o recebimento da denúncia ou queixa: 1. O primeiro, antes da apresentação da resposta do réu; 2. O segundo, após a sua apresentação. O primeiro consta da nova redação dada ao artigo 396, do Código de Processo Penal: “Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente(1), recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.” O segundo está no novo artigo 399: “Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente”.
Assim, pode haver um inicial recebimento da denúncia ou queixa se não houver sua rejeição liminar. São, assim, duas as possibilidades do juiz: rejeição liminar ou recebimento. Se receber, manda citar o acusado para apresentar sua resposta. O outro recebimento pode ocorrer depois de ser facultada ao acusado a possibilidade de apresentar a sua resposta, na qual poderá alegar tudo que deseja em sua defesa e postular a rejeição da acusação ou a sua absolvição sumária. O juiz pode seguir três caminhos: rejeita a acusação, absolve sumariamente ou recebe a denúncia ou queixa. Se receber, marcará audiência para produção de provas, debates e julgamento.
Os novos textos geraram perplexidades e dúvidas.
As perplexidades foram motivadas pela dissonância entre os textos aprovados e os constantes do Projeto nº 4.207/2001, que deu origem à Lei nº 11.719/2008. Ele não previa um primeiro recebimento da denúncia no artigo 396, assim redigido: “Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, ordenará a citação do acusado para responder a acusação, por escrito, no prazo de dez dias, contados da data da juntada do mandado aos autos ou, no caso de citação por edital, do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.” Havia somente um momento para o juiz receber a denúncia ou queixa, aquele posterior à apresentação da resposta pelo réu. A intenção era a de criar a possibilidade da apresentação de defesa pelo acusado antes do recebimento ou rejeição da peça acusatória, nos moldes existentes no procedimento especial previsto para os crimes praticados por funcionário público.
Sobre o Projeto, comentou Maria Silvia Garcia de Alcaraz Reale Ferrari: “O Projeto de Lei 4.207/01, com primor, introduz no ordenamento jurídico, como regra, a defesa preliminar, antes do recebimento da denúncia ou queixa-crime: em seu artigo 395, dispõe que, nos procedimentos ordiná¬rios e sumário, oferecida a denúncia ou queixa-crime, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, ordenará a citação do acusado, para responder à acusação, por escrito, no prazo de dez dias”(2). Observa a autora: “A defesa preliminar, aplicável a todos os procedimentos, é inovação brilhante merecedora de aplausos, ante a obediência desmedida aos princípios garantísticos constitucionais” (grifo nosso)(3).
Na Câmara dos Deputados, houve alteração do projeto, mantendo-se o recebimento do projeto e criando-se outro antes da resposta do réu. No Senado Federal, optou-se pela manutenção do texto original. No entanto, quando o texto voltou à Câmara, a emenda proposta pelo Senado foi rejeitada, conforme parecer do deputado Régis Fernandes de Oliveira(4), do qual se depreende a intenção de evitar o seguimento de processos com acusações manifestamente ineptas.
A falta de técnica do legislador gerou dúvidas e já se esboçam equivocadas interpretações.
Apesar da falta de técnica, tem-se a realidade dos novos artigos e das previsões de dois recebimentos, sendo mister dar-lhes interpretação condizente com o espírito da reforma e com a intenção do legislador.
Em que pese o legislador ter usado a mesma denominação para os dois atos do juiz, representam, nos termos da lei, atos distintos, embora tenham a mesma finalidade: análise da possibilidade de ser aceita a acusação. A diversidade entre eles decorre, até com certa facilidade, dos artigos que regulam essa fase de admissibilidade da acusação.
Como se extrai do artigo 396, o primeiro recebimento está ligado à não rejeição liminar da denúncia ou queixa, ou, em outras palavras, ele ocorre quando há viabilidade de se dar seguimento ao processo, porque, numa análise preliminar, não há razão para se repelir a acusação. Não mais do que isso. Pode-se, até mesmo, afirmar que se trata de um recebimento preliminar, provisório. Depois dele, o acusado será citado para apresentar a resposta, mas ainda se segue na fase de admissibilidade de acusação, ainda não encerrada.
Também se retira do artigo 399 que, se após a resposta do acusado, os seus argumentos não forem acolhidos, o juiz não rejeitará a denúncia ou queixa, não absolverá sumariamente, e, então, receberá a peça acusatória, encaminhando o processo para a fase seguinte do julgamento.
A existência de dois juízos de admissibilidade não é fenômeno novo. Isso ocorre, entre nós, nos processos de júri. Em outros países, também eles são encontrados.
Por outro lado, é característica do processo penal a existência dos conhecidos juízos de formulação progressiva, bem retratados pela doutrina, desde Carnelutti, e, entre nós, desde Frederico Marques(5). Tratam-se juízos diversos pela profundidade de cognição exigida, mas incidentes sempre sobre as mesmas matérias: existência do crime e elementos sobre a autoria.
Têm surgido, entretanto, interpretações de que somente existe um momento, o do artigo 396, para o recebimento da denúncia ou queixa: antes do momento de oferecimento da resposta pelo réu. Para justificar essa orientação, acrescenta-se ao artigo 399 o que dele não consta. Afirma-se que teria ocorrido uma omissão por parte do legislador e um erro na redação do texto legal, pois deveria ter sido redigido da seguinte forma: “Recebida a denúncia ou queixa e não sendo o caso de absolvição sumária, o juiz designará dia e hora para a audiência”(6).
Essa exegese não resiste a qualquer tipo de interpretação. Não é o que se extrai do texto literal do artigo 399. Não é o que deriva da análise sistemática dos artigos que compõem a fase de admissibilidade da acusação. Não é o que dimana do espírito da reforma e da intenção do legislador. Os próprios comentadores acrescentam palavras não existentes no artigo 399. Não teria sentido abrir oportunidade ao acusado para a sua resposta, na qual pode alegar qualquer matéria em sua defesa, inclusive as que possibilitam a rejeição da denúncia ou queixa, se o juiz não pudesse mais rejeitar a acusação. As últimas reformas no Brasil (Lei sobre Competência Originária, Lei dos Juizados Especiais Criminais, Lei Antitóxicos) e a projetada para os procedimentos do código tiveram como objetivo proporcionar ao acusado se defender antes de ser admitida a acusação. O legislador, como está no parecer acima referido, elaborado por talentoso juiz de direito, quis, com o recebimento preliminar, impedir o seguimento de processos quando a acusação for manifestamente inidônea, com o objetivo de proteger o acusado, a fim de não precisar comparecer perante o juízo e se defender.
Embora não tenha o legislador usado da melhor técnica, criou um procedimento justo e equilibrado. Permite ao Ministério Público ou à vítima oferecer denúncia ou queixa. Possibilita ao juiz, em casos de manifesta falta de idoneidade da acusação, que o juiz, que, liminarmente, não a acolha, recebendo provisoriamente a denúncia, para o fim de ser o acusado citado. Dá ao acusado oportunidade de se defender. Finalmente, antes de se encaminhar o processo a julgamento, o juiz fará o juízo final de admissibilidade da acusação, quando poderá, aí sim, num juízo mais aprofundado, absolver sumariamente o acusado, repelir a acusação ou receber a denúncia ou queixa.
Notas
(1) Segundo a nova redação do artigo 395, do CPP, a denúncia ou queixa será rejeitada quando: “I – for manifestamente inepta; II – faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou III – faltar justa causa para o exercício da ação penal.”
(2) Código de Processo Penal, Comentários aos Projetos de Reforma Legislativa, Editora Millennium, 2003, p. 151.
(3) Código de Processo Penal, Comentários aos Projetos de Reforma Legislativa, Editora Millennium, 2003, p. 152.
(4) Consta do parecer: “Emenda n. 8: Pretende alterar no caput do art. 395, do Código de Processo Penal, o termo ‘recebê-la-á’ sob a justificativa de que o ato de recebimento da denúncia está previsto no momento descrito no art. 399. O instrumento que é o processo, não pode ser mais importante do que a própria relação material que se discute nos autos. Sendo inepta de plano a denúncia ou queixa, razão não há para se mandar citar o réu e, somente após a apresentação de defesa deste, extinguir o feito. Melhor se mostra que o Juiz ao analisar da denúncia ou queixa ofertada fulmine relação processual infrutífera. Rejeita-se a alteração proposta pelo Senado.”
(5) Citando Frederico Marques, fala-se no juízo progressivo adquirido com base em “dados e elementos diversos” e, em sua formulação por meio da imputação, produz “efeitos e conseqüências de natureza diferente, consoante integre uma notitia criminis, uma acusação ou uma sentença condenatória, respectivamente” (FERNANDES, Antonio Scarance. Reação Defensiva à Imputação, Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 156.
(6) MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova Reforma do Código de Processo Penal, Comentada Artigo por Artigo. São Paulo: Editora Método, 2008, pp. 266/267. No mesmo sentido, André Estefam Araújo Lima, in “A lei nº 11.719/2008 não criou defesa preliminar”, publicado no site
www.damasio.com.br/?page_name=art_023_2008& category_id=506.
Antonio Scarance Fernandes
Professor titular de Direito Processual Penal da USP, procurador de Justiça aposentado e coordenador do ASF - Cursos e Eventos
Mariângela Lopes
Advogada, mestre e doutoranda em Direito Processual Penal pela USP
Na mesma linha de argumentação, Cezar Roberto Bitencourt assim dispõe :
O recebimento da denúncia segundo a Lei 11.719/08
POR CEZAR ROBERTO BITENCOURT E JOSE FERNANDO GONZALEZ
Juízo de admissibilidade e contraditório antecipado
Desde muito tempo os operadores do Direito, em sua maioria, reclamavam modificações no processo penal; entre os argumentos, não raro o de que a atividade investigatória registra baixa efetividade em nosso sistema repressivo, sendo demasiadamente burocrática; ou que o processo propriamente dito seria moroso e permeável a um conjunto de práticas que tanto poderiam servir à busca da chamada verdade real quando à procrastinação pura e simples. Pois a reforma aí está, introduzindo profundas alterações em determinados pontos do sistema; nesse contexto, a Lei 11.719, em vigência desde agosto de 2008, que alterou institutos como a emendatio libelli e a mutatio libelli, bem como estabeleceu novas regras para os procedimentos em geral. Resta saber se todas essas modificações estão em consonância com a expectativa da comunidade jurídica, e se irão mesmo produzir os resultados que se apregoa.
A questão fulcral, parece-nos, preliminarmente, reside no juízo de admissibilidade da ação penal, ou seja, haverá um ou dois recebimentos da denúncia ou queixa, ou, mais precisamente, valerá a primeira ou a segunda previsão legal? A complexidade que o novo texto legal apresenta a um tema até então de fácil compreensão, recomenda uma reflexão mais alentada, na tentativa de contextualizá-lo adequadamente. No anterior modelo, o juízo de admissibilidade, a que sempre denominamos recebimento da denúncia ou queixa, dava-se, em regra, imediatamente após o oferecimento da inicial acusatória. Trata-se (o recebimento) de providência relevante, porquanto constitui marco interruptivo da prescrição (art. 117, I, do Código Penal) e, ao menos no sistema anterior, presa ao princípio da indisponibilidade; assim, recebida a inicial, tinha-se que a ação penal era (ou ainda é?) como uma flecha, que desprendida do arco que a impulsiona somente no alvo (a sentença) exaure a sua força.
Também não é de hoje que se discute a possibilidade de haver contraditório em momento anterior ao juízo de admissibilidade (recebimento da denúncia ou queixa); há vantagens nisso, tanto para o acusado (possibilidade de demonstrar desde logo que a ação é infundada) quanto para o próprio Estado Jurisdição (possibilidade de abreviar demandas inúteis e/ou aglutinar atos instrutórios). Não é outra coisa o que temos para os crimes de imprensa, pois a Lei 5.250/67, em seu artigo 44, estabelece que o recebimento da denúncia só irá acontecer depois do oferecimento de resposta pela defesa; é o que também ocorre nos casos submetidos aos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95, art. 81) e, de certo modo, no procedimento previsto para os crimes de tráfico (Lei 11.343/06).
Pois é justamente quanto ao recebimento da denúncia ou queixa que a Lei 11.719/08 enseja, a nosso sentir, maior controvérsia. O PL 4.207/01, que deu origem à lei, chegou ao Congresso Nacional com a proposta de uma uniformização dos procedimentos e, fora de qualquer dúvida, pretendendo um modelo de contraditório antecipado, em que o juízo de admissibilidade só aconteceria depois da manifestação defensiva; basta ver a redação que era pretendida para o artigo 395:
“Art. 395. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de dez dias, contados da data da juntada do mandado aos autos ou, no caso de citação por edital, do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.”
O projeto, no entanto, sofreu alterações no Congresso Nacional; e a redação que se pretendia dar ao art. 395 tornou-se, com emendas, aquela do atual art. 396. Ou seja:
Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.
Exceção feita ao marco inicial do prazo para oferecimento de resposta (foi abolida a idéia da contagem a partir da juntada do mandado aos autos) ou aos casos de citação por edital (a previsão foi deslocada para o parágrafo), o texto em vigência (art. 396) reproduz a redação pretendida pelo projeto para o artigo 395, só que ali foi inserida a expressão “recebê-la-á”. Pode parecer, então, que o legislador teria pretendido retroceder ao antigo sistema, mantendo o juízo de admissibilidade ab initio. Ocorre que, em linhas gerais, as demais disposições do projeto foram mantidas, como adiante veremos; e muitas delas são, a nosso ver, incompatíveis com o recebimento da denúncia nesse primeiro momento. O legislador, então, pode até ter pretendido antecipar o recebimento da inicial (juízo de admissibilidade) para oportunidade anterior à citação, mas certamente não o fez.
Em primeiro lugar, antes que se passe à análise dos dispositivos introduzidos pela reforma, faz-se necessário lembrar que, ao menos sob enfoque jurídico — e para efeitos processuais — recebimento da denúncia ou queixa e juízo de admissibilidade são expressões equivalentes. Veja-se a doutrina:
“‘Recebimento’ não se confunde com ‘oferecimento’, e caracteriza-se pelo despacho inequívoco do juiz recebendo a denúncia ou queixa. Despacho meramente ‘ordinatório’ não caracteriza seu recebimento.”[1]
O exame sistemático do novo regramento permite que dele se extraia todo um conjunto de conclusões. E nos parece conveniente iniciar pela nova redação do artigo 363:
“Art. 363. O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado.”
Para o anterior modelo, a relação processual se completava com o recebimento (admissibilidade) da inicial, daí o fundamento para que fosse esse o marco interruptivo do prazo prescricional (e não a citação); a partir desse marco o acusado transmudava-se à condição de réu; por isso benefícios, como a suspensão condicional do processo, estavam vinculados ao recebimento da denúncia (art. 89, § 1o, da Lei 9.099/95). A Lei 11.719/08 introduziu no processo penal, portanto, alteração profunda, de natureza estrutural, emprestando instituições típicas do processo civil; a redação atual do artigo 363 atribui à citação válida no processo penal dignidade semelhante àquela estabelecida pelo artigo 219 do Código de Processo Civil.
Juízo de admissibilidade: causas de rejeição e absolvição sumária
Num segundo momento, a novel legislação, cuidando da admissibilidade, enumerou circunstâncias, erigindo-as à condição de causas de rejeição (art. 395) ou absolvição sumária (art. 397). Não se deve pensar que essa seja uma inovação substancial, pois todas essas possibilidades (395 e 397) já existiam entre nós, e sua utilização não era rara. Qual o juiz que, antes da reforma, receberia uma denúncia inepta? Ou não poderia o juiz, antes, rejeitar a inicial por entender tratar-se de conduta atípica? O que verificamos no texto novo caracteriza tão somente uma tentativa de aperfeiçoar a redação do artigo 43 (revogado), dividindo os fundamentos da inadmissibilidade em dois grupos: o primeiro diz com a forma, e a esse a lei denominou causas de rejeição; o segundo alcança o mérito, dizendo-se causas de absolvição sumária; a rejeição faz coisa julgada só formal; a absolvição sumária faz coisa julgada material. Mas isso também não é novidade: desde muitos anos o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul vem entendendo que “rejeição” e “não recebimento” são coisas distintas; a Corte considerava “rejeição” a recusa pelo mérito, e “não recebimento” pela forma. Por isso nos casos de “rejeição” entendia cabível recurso de apelação; e ante a equivocada interposição de um recurso por outro resolvia pela fungibilidade recursal, como exemplifica o seguinte aresto:
“Princípio da fungibilidade. Recebimento do recurso como apelação. A decisão que rejeita a denúncia, com fulcro no art. 43 do CP, desafia apelação-crime e não recurso em sentido estrito. Aplicação do princípio da fungibilidade para receber a inconformidade ministerial como apelação.”[2]
Pelo novo sistema, o juízo de (in)admissibilidade dar-se-á do seguinte modo: oferecida a denúncia ou queixa, ao juiz é reconhecida, desde logo, a faculdade de rejeição liminar (art. 396). Evidente que esse ainda não será o momento definitivo para a rejeição propriamente dita, mas apenas uma possibilidade para que o juiz faça isso liminarmente; assim, frente a uma inicial notadamente inepta, poderá o juiz “rejeitá-la” de plano. A decisão que se contrapõe à “rejeição liminar” decerto não pode ser confundida com “recebimento”, ao menos para os efeitos jurídicos que disso podem advir ao acusado, como a interrupção da prescrição, por exemplo. Pensamos que o juiz, nessa oportunidade, em não rejeitando liminarmente a inicial, proferirá despacho meramente ordinatório, determinando a citação. A admissibilidade “stricto sensu” só acontecerá mais tarde, quando o juiz poderá, examinados os argumentos de defesa, ainda rejeitar; ou absolver sumariamente o acusado; ou mesmo receber a inicial. E, como nos parece totalmente despropositado possa haver dois juízos de admissibilidade, temos que o art. 396 cuida tão somente de uma possibilidade de rejeição liminar. Ou isso ou seria necessário dizer que recebimento da denúncia não equivale a juízo de admissibilidade; e para isso seria necessário renegar conceitos doutrinários e posições jurisprudenciais consolidados desde décadas.
Por outro lado, estivesse já esgotada a possibilidade de rejeição, a manifestação obrigatória do acusado (art. 396-A), em que poderá alegar ...tudo o que interesse à sua defesa..., tornar-se-ia, no mais das vezes, providência meramente formal, vazia de conteúdo, a exemplo do que antes já ocorria. Portanto, o novo modelo reclama interpretação sistemática dos dispositivos, não se podendo atribuir à expressão recebê-la-á um significado puramente textual; trata-se, segundo pensamos, de receber para o só efeito de mandar citar. Em não rejeitando liminarmente a denúncia ou queixa, o juiz determinará a citação, para que o acusado ofereça resposta. Cumprida essa providência defensiva o juiz deverá, diz a lei, absolver sumariamente o acusado quando verificar presente qualquer das hipóteses dos incisos do art. 397; ou, parece claro, repita-se por necessário, ainda rejeitar, caso só então reste convencido de que presente alguma daquelas hipóteses do artigo 395.
Quanto ao disposto no artigo 397, exceção feita à alínea IV (extinta a punibilidade do agente), todas as demais (I — a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II — a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; e III — que o fato narrado evidentemente não constitui crime) são hipóteses de inadmissibilidade com alcance de mérito, a que antes denominávamos rejeição, e em que se entendia cabível recurso de apelação. A extinção de punibilidade, cujo reconhecimento não pode ser confundido com decisão absolutória, foi inserida no rol desse dispositivo pelo só fato de que, inadmitida a ação ao amparo de prescrição, por exemplo, outra denúncia ou queixa não pode ser tolerada quando oferecida em razão do mesmo fato. Melhor seria se o legislador, no que respeita às causas extintivas da punibilidade, tivesse apenas remetido ao artigo 61 do diploma.
Não foi sem causa, decerto, que, cuidando dos procedimentos, já na primeira regra, no inciso III, do parágrafo 1º, do artigo 394, a novel legislação introduziu comando que mantém inalterado o modelo dos Juizados Especiais Criminais para os casos de infrações de menor potencial ofensivo. Ou que sentido haveria em a legislação — cujo propósito uniformizador é inquestionável — adotar posição conservadora tão somente em relação aos procedimentos ordinário e sumário, mantendo expressamente inalterado o sistema da Lei 9.099/95? E lá, nos Juizados Especiais, não paira dúvida de que o procedimento seja de contraditório antecipado. Veja-se, a propósito, interessante ementa da Turma Recursal da Capital Gaúcha:
APELAÇÃO DEFENSIVA. AMEAÇA. ARTIGO 147 DO CÓDIGO PENAL. PRESCRIÇÃO.
“Havendo momento legal próprio no procedimento sumaríssimo da Lei 9099/95 para o recebimento da denúncia, somente este tem o potencial jurídico para a interrupção da prescrição, no plano do direito material. Denúncia recebida antes de ser o réu citado e apresentar defesa prévia não observa o devido processo legal, conforme artigo 81 do citado diploma, não provocando, portanto, a interrupção do prazo prescricional. Este, no caso, foi interrompido na audiência, após citado o réu a apresentada defesa prévia. Preliminar de prescrição acolhida. Unânime.”[3]
Por outro lado, é necessário atentar para o que agora dispõe o inciso I, do artigo 156, do diploma processual, com a redação que lhe foi dada pela Lei 11.690, de 09 de junho de 2008:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I — ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
Em que momento dar-se-á essa produção antecipada de provas? A questão mais uma vez exige interpretação sistemática: (1) referida providência não pode, decerto, acontecer em momento anterior ao oferecimento da denúncia ou queixa, sob pena de o juiz substituir-se à autoridade policial, o que soaria totalmente desconexo frente ao sistema que adotamos; (2) também não haveria qualquer lógica em que pudesse acontecer após o juízo de admissibilidade, porquanto, se fosse assim, não se cogitaria de produção antecipada de prova.
A conclusão que se impõe, portanto, é de que ao juiz é facultado dilatar a prova no intervalo que medeia entre o oferecimento da inicial acusatória e o juízo acerca de sua admissibilidade. E não se trata de novidade, pois é exatamente disso que cuida o parágrafo 5o, do artigo 55, da Lei 11.343 (Lei de Drogas), em vigência desde 2006; a inovação agora contida no inciso I, do artigo 156, consiste apenas em estender essa possibilidade a todos os procedimentos, o que impõe concluir que em todos eles terá de haver contraditório antecipado; e isto porque não haveria lógica em o juiz antecipar prova antes de ouvir a defesa, para o só efeito de uma possível rejeição liminar. Portanto, a faculdade que a lei entrega ao juiz consiste, fora de dúvida, possa, apresentados os argumentos da defesa, e considerando sua relevância relativamente às possibilidades de rejeição ou absolvição sumária, antecipar elementos de prova para, só depois, decidir sobre a admissibilidade da ação.
O contraditório antecipado e a irrelevância dos reflexos na prescrição
Os reclamos, que aqui e ali se fazem ouvir, de que um modelo de contraditório antecipado, em que o recebimento da denúncia ou queixa só aconteça após manifestação defensiva, ensejaria recrudescimento da prescrição; que a providência citatória pode demandar tempo significativo em alguns casos, o que retardaria o juízo de admissibilidade; decerto não podem ser tomados em conta de “argumentos” para a correta aferição do novo sistema. Em primeiro lugar, o eventual retardamento em face da citação, deslocando o marco interruptivo da prescrição para o futuro, tem duplo significado: (1) aumenta, é certo, o lapso temporal entre o fato e o recebimento da denúncia ou queixa; (2) em contrapartida, diminui o lapso entre o juízo de admissibilidade e a sentença condenatória recorrível; assim, tanto pode contribuir para a prescrição quanto para evitá-la. De outra parte, lembremos que a possibilidade de defesa preliminar, assegurada nos artigos 514 do diploma processual e 4º da Lei 8.038/90, igualmente reclama providência notificatória que pode retardar o juízo de admissibilidade, e nem por isso foi alguma vez questionada à luz da maior ou menor incidência de prescrição. Afora tudo isso, eventual aumento dos casos de prescrição, ainda que verdadeiro fosse, teria de ser visto como uma conseqüência do novo modelo, não nos parecendo razoável colacioná-lo a guisa de “fundamento” para interpretar a lei neste ou naquele sentido.
Também se escuta observações de que seria despropositado citar o acusado antes do recebimento da denúncia ou queixa. Em verdade, como já dissemos anteriormente, é necessário atentar para a redação do caput do artigo 363, introduzida pela reforma, não nos parecendo, diante dessa regra, existir qualquer obstáculo a que a citação aconteça antes da admissibilidade. Aliás, vale repetir que a Lei 5.250 (Lei de Imprensa), desde o distante ano de 1967 prevê a citação antes do recebimento da denúncia (artigo 43, § 1º), e não temos conhecimento de que a doutrina tenha alguma vez questionado esse dispositivo.
De outra parte, igualmente não prospera a alegação de que a admissibilidade deveria acontecer desde logo, pois que seria ilógico o juiz absolver sumariamente antes de receber a inicial. Mais uma vez o equívoco está em interpretar as novas regras tomando em conta o modelo anterior (revogado). À absolvição sumária contrapõe-se não à condenação, mas sim — e justamente — à admissibilidade da ação; tem-se, com isso, que a absolvição sumária (art. 397), tanto quanto a rejeição (art. 395), não só podem como devem acontecer justo no momento em que o juiz decide sobre o recebimento ou não da inicial.
Inconstitucionalidade parcial com redução de texto
Diante de tudo isso, mesmo que a expressão ‘recebê-la-á’, inscrita no artigo 396, por amor ao texto legal — que, segundo se diz, não contém palavras inúteis — fosse tomada ao pé da letra, isso configuraria violação ao modelo, descaracterizando-o pela contradição entre os dispositivos; verificar-se-ia, fosse assim, hipótese de inconstitucionalidade parcial, com redução de texto, devendo, segundo entendemos, ser suprimida a equivocada expressão “recebê-la-á”, que reconhecidamente vai de encontro, por inteiro, ao sistema que o novo diploma legal pretende implantar.
Não há dúvida de que uma norma será tanto pior quanto maior for o grau de dificuldade que impuser a seus intérpretes; não é menos certo, porém, que a leitura será tão pior quanto maior for o casuísmo incorporado ao propósito da exegese. A reforma recentemente introduzida ao processo penal brasileiro contém graves defeitos: aqui e ali foi mutilada pelos arranjos de ocasião, que são característicos da esfera política, e que, via de regra, pouco têm a ver com a técnica do direito; “importou” instituições do processo civil, como a citação por hora certa, desconsiderando o fato de o processo penal ser preso a princípios quase sempre incompatíveis com as cousas do direito privado. Tudo isso faz com que a aplicação do novo sistema constitua importante desafio aos operadores do direito, de quem se espera a cautela necessária, na busca de uma interpretação que dê harmonia ao texto e, acima de tudo, venha despovoada de preconceitos ou interesses meramente institucionais.
Diante desse conjunto de argumentos, acreditamos que o novo modelo é sim de contraditório antecipado, e que o recebimento da denúncia ou queixa, assim considerado o juízo de admissibilidade da ação, dar-se-á após a manifestação defensiva, ou seja, no segundo momento, aquele de que cuida o art. 399 do Código de Processo Penal com a redação que agora lhe foi dada. Reconheça-se que a controvérsia inicial sobre o tema guarda relação tão somente com o marco interruptivo da prescrição: não fosse esse “efeito” da admissibilidade e inexistiria relevância alguma em estabelecer qual o momento em que se dá o recebimento da denúncia ou queixa. O que nos parece necessário compreender — e defender — é que a reforma da legislação processual penal, por mais profunda que possa ter sido, não irá “derrogar” convicções há muito consolidadas, entre elas a de que recebimento da denúncia ou queixa, para que se erga à condição de causa interruptiva da prescrição, precisa ser tido como um equivalente ao juízo de admissibilidade.
________________________________________
[1] Bitencourt, Cezar Roberto; Código Penal Comentado, Saraiva, 3ª ed., 2005, p. 376.
[2] TJRS, Ap. 70023949704, 8a Câmara Criminal, j. em 25.06.2008.
[3] Turma Recursal Criminal, Poá-RS, Recurso Crime 71000962001.
Ressalte-se que esse entendimento é o pretendido tanto pelos autores da Reforma Processual Penal de 2008 assim como pelo Congresso Nacional, onde estaríamos diante de um Juízo de Deliberação Progressivo, segundo uma moderna corrente européia (França, Itália), citando como autores do direito comparado: Valérie Dervieux, e Antoinette Perrodet , onde admitir-se-ia um juízo de admissibilidade positivo e outro juízo de admissibilidade negativo.
Estaríamos portanto diante de uma tendência da Europa com dois momentos de admissibilidade da exordial, um juízo de admissibilidade provisório (art. 396, CPP) e um juízo de admissibilidade definitivo (art. 399, CPP).
Aproveita-se a oportunidade para ensejar que o entendimento desse docente, em que pense posições em sentido contrário, é na idéia de que o recebimento na exordial seria no momento processual do art. 399, CPP e não no art. 396, CPP.
Ora, após a manifestação da resposta do réu onde o magistrado realmente poderá analisar a luz do contraditório se receberá ou não a exordial absolvendo ou não sumariamente, data venia, entendimento diverso do narrado pelo docente, onde mesmo admitindo-se a tese em sentido contrário, necessitar-se-á de fundamentação consistente á valoração verificado na seqüência.
Dentro desse contexto polêmico e árido verificado com interpretações doutrinárias, jurisprudenciais, autênticas, literais, históricas, teleológicas assim como ref. ao direito comparado
domingo, 20 de fevereiro de 2011
domingo, 22 de março de 2009
Direito Penal do Inimigo. Luiz Regis Prado.
Matérias > Entrevista
Entrevista
Direito Penal do Inimigo
Entrevistado
Luiz Regis Prado
Professor Titular de Direito Penal e Teoria Geral do Direito e Vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Estadual de Maringá Pós-doutor em Direito Penal pela Universidade de Zaragoza (Espanha); Pós-doutor em Direito Penal Ambiental Comparado pela Universidade Robert Schuman de Strasbourg (França); Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha); Autor de diversas obras publicadas pela editora RT. www.regisprado.com
Carta Forense - Para podermos entender o contexto da entrevista que desenrolará, como o senhor conceitua o Direito Penal do Inimigo?
Luiz Regis Prado - O Direito Penal do inimigo é um Direito Penal de exceção, feito regra. Trata-se de uma construção teórica fundamentada essencialmente na distinção entre cidadãos e não-cidadãos (ou inimigos) que, no âmbito dogmático, consiste na própria separação entre pessoas e não-pessoas, conduzindo à distinção entre dois pólos de regulação normativa penal, coexistentes no ordenamento jurídico: um dirigido ao cidadão e outro ao inimigo. Desse modo, de um lado, o Direito Penal do cidadão define e sanciona delitos cometidos por pessoas de forma incidental, ou seja, delitos que representam um abuso nas relações sociais de que participam. Assim, o cidadão oferece a chamada "segurança cognitiva mínima", ou seja, a garantia de que se submetem ao preceito normativo e, por isso, são chamados a restaurar a sua vigência por meio da imposição sancionatória. Por essa razão, esses indivíduos continuam a ser considerados pessoas e, portanto, cidadãos aptos a fruir de direitos e garantias assegurados a todos que partilhem desse status. O Direito Penal do inimigo, de seu turno, dirige-se a indivíduos que, por seu comportamento, externam uma pretensão de ruptura ou destruição da ordem normativa vigente e, portanto, perdem o status de pessoa e cidadão, submetendo-se a um verdadeiro Direito Penal de exceção, cujas sanções têm por finalidade primordial não mais a restauração da vigência normativa, mas assegurar a própria existência da sociedade em face desses indivíduos. O Direito Penal do inimigo tem como uma de suas marcantes características o combate a perigos, por isso representa, em muitos casos, uma antecipação de punibilidade, na qual o "inimigo" é interceptado em um estado inicial, apenas pela periculosidade que pode ostentar em relação à sociedade. Para ele, não é mais o homem (= pessoa de "carne e osso") o centro de todo o Direito, mas sim o sistema, puramente sócionormativo.
CF - O que se define por "inimigos"?
LRP - O "inimigo" é considerado o "irreconciliavelmente oposto", isto é, aquele que apresenta um distanciamento duradouro e não incidental das regras de Direito, verificado pelo seu comportamento pessoal, profissão, vida econômica, etc. As relações sociais desses indivíduos desenvolvem-se à margem do Direito e, por isso, não oferecem a segurança cognitiva mínima necessária para que sejam considerados como pessoas. Essa condição de inimigo radica, sobretudo, em sua desconsideração enquanto pessoa, conceito que, segundo essa teoria, tem um viés normativo. Assim, pessoa não é um dado natural, inerente a todo e qualquer indivíduo, mas está relacionado ao destino das expectativas normativas. É dizer: a atribuição dessa condição social - pessoa - a um indivíduo depende do grau de satisfação das expectativas normativas que ele é capaz de prestar. O inimigo, portanto, seria incapaz de atender o mínimo de expectativas normativas, pois, em realidade, ele não só refuta a legitimidade do ordenamento jurídico, como busca a sua destruição.
CF - O que muda no tratamento de um do cidadão normal e um "inimigo"?
LRP - Do ponto de vista dogmático, como antes afirmado, o inimigo não é considerado como pessoa para o ordenamento jurídico porque não oferece um grau mínimo de satisfação das expectativas normativas. Isso implica a supressão de uma série de garantias individuais - de cunho material, processual ou de execução - que, além de inocuizá-los, tem por escopo facilitar o combate a determinadas formas de criminalidade como, por exemplo, o terrorismo e a criminalidade organizada. Nesse sentido, busca-se eliminar certos grupos de indivíduos, o que denota traços característicos de um Direito Penal autoritário, afastado dos princípios que regem o Direito Penal do fato, caracterizando-se, portanto, como verdadeiro Direito Penal do autor.
CF - Dentro desta teoria há fundamentos filosóficos?
LRP - Sim. Há fundamentos filosóficos e muito mais antigos. As raízes históricas desse pensamento remontam, sobretudo, a certas concepções da filosofia moderna, como as de Rousseau, Fitche, e, especialmente de Hobbes, cuja contribuição foi decisiva para emprestar ao Direito Penal do inimigo os conceitos de "estado de natureza", "contrato" e "direito de guerra" contra os inimigos. Portanto, dessa construção de Jakobs não emerge tanta novidade; houve, na verdade, uma sistematização de idéias próprias da filosofia moderna e de um pensamento autoritário bem mais antigo.
CF - Dentro da teoria do direito penal, quais são as características mais marcantes?
LRP - Pode-se mencionar como traços marcantes dessa construção, a antecipação de punibilidade (combate a perigos), buscando-se atingir momentos anteriores à realização do fato delituoso propriamente dito (punem-se inclusive os atos preparatórios); não visa à proteção de bens jurídicos, mas a estabilidade de expectativas normativas (ordenamento penal sistêmico e meramente formal); o processo é quase sumário, desprovido das garantias fundamentais. Com relação às penas, verifica-se um notável incremento das margens penais e flagrante desproporcionalidade, entre outras características.
CF - Quais são os principais traços na sua aplicação, em contraposição ao Direito Penal do cidadão?
LRP - As manifestações do Direito Penal do inimigo incidem sobre diferentes instâncias do sistema penal. Há dispositivos de natureza material, processual e de execução penal, que enunciam características dessa doutrina, vigentes em Estados Democráticos de Direito. Essa construção relaciona-se com a utilização excessiva da lei penal, que passa a ser a prima ratio e não a ultima ratio, o emprego desmedido de medidas emergenciais simbólicas e negativas, a flexibilização excessiva de princípios penais liberais e supressão de garantias. Prevalece a finalidade de prevenção especial negativa da sanção penal, utilizada para neutralizar ou segregar o indivíduo que, segundo essa concepção, jamais terá condições de oferecer a garantia mínima de satisfação das expectativas normativas. O Direito Penal do inimigo é construído a partir da pessoa do delinqüente e não do fato delituoso, como ocorre com o Direito Penal do cidadão.
CF - Com as garantias processuais suspensas ou revogadas para estes casos, como se chega a entrega jurisdicional?
LRP - Em princípio, a entrega da prestação jurisdicional ocorre da mesma forma.
CF - Muitos estudiosos citam como exemplo prático do Direito Penal do Inimigo o que aconteceu na Alemanha Nazista, o senhor concorda?
LRP - Em que pese essa construção não tenha sido desenvolvida na época da propagação do pensamento nazista, não resta dúvida que a grande maioria das leis penais e processuais elaboradas e aplicadas durante a vigência do regime nazista na Alemanha apresenta traços típicos do Direito Penal do inimigo. As normas penais então em vigor eram de caráter eminentemente segregacionista e autoritário.
CF - Existem hoje países que adotam este sistema?
LRP - Em muitos ordenamentos jurídicos, inclusive de Estados democráticos e liberais, há dispositivos próprios do Direito Penal do inimigo. É importante destacar que essas esferas de regulação - Direito Penal do inimigo e do cidadão - não são neutras ou puras, ou seja, são opostos matizáveis que não compreendem unicamente dispositivos de "guerra", como no caso do primeiro, ou só de "diálogo", como ocorre no segundo. Em outras palavras, dentro dessa esfera de regulação denominada Direito Penal do inimigo pode haver dispositivos identificáveis como próprios do Direito Penal do cidadão e vice-versa.
CF - Podemos dizer que o Direito Penal Militar brasileiro, em tempo de guerra, é nossa forma mais próxima de Direito Penal do Inimigo?
LRP - Não. Em tempo de guerra, o Direito Penal militar constitui-se basicamente de leis excepcionais ou temporárias, aplicáveis àquele momento excepcional por que passa o País e estão diretamente relacionadas a esse fato. O Direito Penal do inimigo, ao contrário, é duradouro, não diz respeito a quaisquer fatos específicos e se centra na pessoa do autor do delito.
CF - Enfim, o senhor consegue enxergar alguma coisa boa na teoria? Qual sua opinião pessoal?
LRP - O Direito Penal compatível com um Estado Democrático de Direito deve ser liberal, democrático e garantista. Logo, uma teoria que se fundamente na separação entre pessoas e não-pessoas, a partir de um conceito meramente normativo, descartando flagrantemente o aspecto ontológico da condição de ser responsável e capaz de se portar conforme ou contra o preceito normativo inerente a todo ser humano, criando, dessa forma, uma "pessoa normativizada", não possui qualquer reflexo positivo. De outro lado, essa discussão não teria relevância em um Estado totalitário, em que o Direito Penal como um todo é voltado para o combate aos "inimigos" do Estado. Todavia, não se pode afirmar que todas as formas de delinqüência devam ser tratadas da mesma forma. O Estado pode utilizar os próprios mecanismos para possibilitar persecução e punição mais eficazes a determinadas formas de criminalidade, sem rechaçar os preceitos lhe fundamentam, por meio do fortalecimento de medidas de prevenção, aparelhamento e modernização de instituições já existentes, dificultar a concessão de certos benefícios processuais e de execução penal com base em requisitos objetivos, sem que isso implique a supressão de tais benefícios, etc.
Jornal Carta Forense, terça-feira, 3 de março de 2009
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Entrevista
Direito Penal do Inimigo
Entrevistado
Luiz Regis Prado
Professor Titular de Direito Penal e Teoria Geral do Direito e Vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Estadual de Maringá Pós-doutor em Direito Penal pela Universidade de Zaragoza (Espanha); Pós-doutor em Direito Penal Ambiental Comparado pela Universidade Robert Schuman de Strasbourg (França); Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha); Autor de diversas obras publicadas pela editora RT. www.regisprado.com
Carta Forense - Para podermos entender o contexto da entrevista que desenrolará, como o senhor conceitua o Direito Penal do Inimigo?
Luiz Regis Prado - O Direito Penal do inimigo é um Direito Penal de exceção, feito regra. Trata-se de uma construção teórica fundamentada essencialmente na distinção entre cidadãos e não-cidadãos (ou inimigos) que, no âmbito dogmático, consiste na própria separação entre pessoas e não-pessoas, conduzindo à distinção entre dois pólos de regulação normativa penal, coexistentes no ordenamento jurídico: um dirigido ao cidadão e outro ao inimigo. Desse modo, de um lado, o Direito Penal do cidadão define e sanciona delitos cometidos por pessoas de forma incidental, ou seja, delitos que representam um abuso nas relações sociais de que participam. Assim, o cidadão oferece a chamada "segurança cognitiva mínima", ou seja, a garantia de que se submetem ao preceito normativo e, por isso, são chamados a restaurar a sua vigência por meio da imposição sancionatória. Por essa razão, esses indivíduos continuam a ser considerados pessoas e, portanto, cidadãos aptos a fruir de direitos e garantias assegurados a todos que partilhem desse status. O Direito Penal do inimigo, de seu turno, dirige-se a indivíduos que, por seu comportamento, externam uma pretensão de ruptura ou destruição da ordem normativa vigente e, portanto, perdem o status de pessoa e cidadão, submetendo-se a um verdadeiro Direito Penal de exceção, cujas sanções têm por finalidade primordial não mais a restauração da vigência normativa, mas assegurar a própria existência da sociedade em face desses indivíduos. O Direito Penal do inimigo tem como uma de suas marcantes características o combate a perigos, por isso representa, em muitos casos, uma antecipação de punibilidade, na qual o "inimigo" é interceptado em um estado inicial, apenas pela periculosidade que pode ostentar em relação à sociedade. Para ele, não é mais o homem (= pessoa de "carne e osso") o centro de todo o Direito, mas sim o sistema, puramente sócionormativo.
CF - O que se define por "inimigos"?
LRP - O "inimigo" é considerado o "irreconciliavelmente oposto", isto é, aquele que apresenta um distanciamento duradouro e não incidental das regras de Direito, verificado pelo seu comportamento pessoal, profissão, vida econômica, etc. As relações sociais desses indivíduos desenvolvem-se à margem do Direito e, por isso, não oferecem a segurança cognitiva mínima necessária para que sejam considerados como pessoas. Essa condição de inimigo radica, sobretudo, em sua desconsideração enquanto pessoa, conceito que, segundo essa teoria, tem um viés normativo. Assim, pessoa não é um dado natural, inerente a todo e qualquer indivíduo, mas está relacionado ao destino das expectativas normativas. É dizer: a atribuição dessa condição social - pessoa - a um indivíduo depende do grau de satisfação das expectativas normativas que ele é capaz de prestar. O inimigo, portanto, seria incapaz de atender o mínimo de expectativas normativas, pois, em realidade, ele não só refuta a legitimidade do ordenamento jurídico, como busca a sua destruição.
CF - O que muda no tratamento de um do cidadão normal e um "inimigo"?
LRP - Do ponto de vista dogmático, como antes afirmado, o inimigo não é considerado como pessoa para o ordenamento jurídico porque não oferece um grau mínimo de satisfação das expectativas normativas. Isso implica a supressão de uma série de garantias individuais - de cunho material, processual ou de execução - que, além de inocuizá-los, tem por escopo facilitar o combate a determinadas formas de criminalidade como, por exemplo, o terrorismo e a criminalidade organizada. Nesse sentido, busca-se eliminar certos grupos de indivíduos, o que denota traços característicos de um Direito Penal autoritário, afastado dos princípios que regem o Direito Penal do fato, caracterizando-se, portanto, como verdadeiro Direito Penal do autor.
CF - Dentro desta teoria há fundamentos filosóficos?
LRP - Sim. Há fundamentos filosóficos e muito mais antigos. As raízes históricas desse pensamento remontam, sobretudo, a certas concepções da filosofia moderna, como as de Rousseau, Fitche, e, especialmente de Hobbes, cuja contribuição foi decisiva para emprestar ao Direito Penal do inimigo os conceitos de "estado de natureza", "contrato" e "direito de guerra" contra os inimigos. Portanto, dessa construção de Jakobs não emerge tanta novidade; houve, na verdade, uma sistematização de idéias próprias da filosofia moderna e de um pensamento autoritário bem mais antigo.
CF - Dentro da teoria do direito penal, quais são as características mais marcantes?
LRP - Pode-se mencionar como traços marcantes dessa construção, a antecipação de punibilidade (combate a perigos), buscando-se atingir momentos anteriores à realização do fato delituoso propriamente dito (punem-se inclusive os atos preparatórios); não visa à proteção de bens jurídicos, mas a estabilidade de expectativas normativas (ordenamento penal sistêmico e meramente formal); o processo é quase sumário, desprovido das garantias fundamentais. Com relação às penas, verifica-se um notável incremento das margens penais e flagrante desproporcionalidade, entre outras características.
CF - Quais são os principais traços na sua aplicação, em contraposição ao Direito Penal do cidadão?
LRP - As manifestações do Direito Penal do inimigo incidem sobre diferentes instâncias do sistema penal. Há dispositivos de natureza material, processual e de execução penal, que enunciam características dessa doutrina, vigentes em Estados Democráticos de Direito. Essa construção relaciona-se com a utilização excessiva da lei penal, que passa a ser a prima ratio e não a ultima ratio, o emprego desmedido de medidas emergenciais simbólicas e negativas, a flexibilização excessiva de princípios penais liberais e supressão de garantias. Prevalece a finalidade de prevenção especial negativa da sanção penal, utilizada para neutralizar ou segregar o indivíduo que, segundo essa concepção, jamais terá condições de oferecer a garantia mínima de satisfação das expectativas normativas. O Direito Penal do inimigo é construído a partir da pessoa do delinqüente e não do fato delituoso, como ocorre com o Direito Penal do cidadão.
CF - Com as garantias processuais suspensas ou revogadas para estes casos, como se chega a entrega jurisdicional?
LRP - Em princípio, a entrega da prestação jurisdicional ocorre da mesma forma.
CF - Muitos estudiosos citam como exemplo prático do Direito Penal do Inimigo o que aconteceu na Alemanha Nazista, o senhor concorda?
LRP - Em que pese essa construção não tenha sido desenvolvida na época da propagação do pensamento nazista, não resta dúvida que a grande maioria das leis penais e processuais elaboradas e aplicadas durante a vigência do regime nazista na Alemanha apresenta traços típicos do Direito Penal do inimigo. As normas penais então em vigor eram de caráter eminentemente segregacionista e autoritário.
CF - Existem hoje países que adotam este sistema?
LRP - Em muitos ordenamentos jurídicos, inclusive de Estados democráticos e liberais, há dispositivos próprios do Direito Penal do inimigo. É importante destacar que essas esferas de regulação - Direito Penal do inimigo e do cidadão - não são neutras ou puras, ou seja, são opostos matizáveis que não compreendem unicamente dispositivos de "guerra", como no caso do primeiro, ou só de "diálogo", como ocorre no segundo. Em outras palavras, dentro dessa esfera de regulação denominada Direito Penal do inimigo pode haver dispositivos identificáveis como próprios do Direito Penal do cidadão e vice-versa.
CF - Podemos dizer que o Direito Penal Militar brasileiro, em tempo de guerra, é nossa forma mais próxima de Direito Penal do Inimigo?
LRP - Não. Em tempo de guerra, o Direito Penal militar constitui-se basicamente de leis excepcionais ou temporárias, aplicáveis àquele momento excepcional por que passa o País e estão diretamente relacionadas a esse fato. O Direito Penal do inimigo, ao contrário, é duradouro, não diz respeito a quaisquer fatos específicos e se centra na pessoa do autor do delito.
CF - Enfim, o senhor consegue enxergar alguma coisa boa na teoria? Qual sua opinião pessoal?
LRP - O Direito Penal compatível com um Estado Democrático de Direito deve ser liberal, democrático e garantista. Logo, uma teoria que se fundamente na separação entre pessoas e não-pessoas, a partir de um conceito meramente normativo, descartando flagrantemente o aspecto ontológico da condição de ser responsável e capaz de se portar conforme ou contra o preceito normativo inerente a todo ser humano, criando, dessa forma, uma "pessoa normativizada", não possui qualquer reflexo positivo. De outro lado, essa discussão não teria relevância em um Estado totalitário, em que o Direito Penal como um todo é voltado para o combate aos "inimigos" do Estado. Todavia, não se pode afirmar que todas as formas de delinqüência devam ser tratadas da mesma forma. O Estado pode utilizar os próprios mecanismos para possibilitar persecução e punição mais eficazes a determinadas formas de criminalidade, sem rechaçar os preceitos lhe fundamentam, por meio do fortalecimento de medidas de prevenção, aparelhamento e modernização de instituições já existentes, dificultar a concessão de certos benefícios processuais e de execução penal com base em requisitos objetivos, sem que isso implique a supressão de tais benefícios, etc.
Jornal Carta Forense, terça-feira, 3 de março de 2009
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domingo, 8 de março de 2009
A nova lei 11.719/08 e seus efeitos sobre o rito dos juizados especiais criminais
A nova lei 11.719/08 e seus efeitos sobre o rito dos juizados especiais criminais
Ricardo Sidi
Advogado criminalista e pós-graduado em Direito Penal Empresarial pela PUC/RJ
SIDI, Ricardo. A nova Lei 11.719/08 e seus efeitos sobre o rito dos juizados especiais criminais. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 193, p. 12-13, dez. 2008.
A Lei 11.719/08 trouxe significativas alterações aos ritos ordinário e sumário, sendo a intenção deste artigo demonstrar que, também em relação ao procedimento da Lei 9.099/95, a nova lei trouxe dispositivos relevantes, que merecem atenção da doutrina.
Como se trata de norma recentíssima, ainda não existe, por óbvio, consenso doutrinário ou jurisprudencial acerca de todos os seus efeitos, o que só costuma ocorrer depois de numerosas contribuições acadêmicas.
Na nova redação do artigo 394 do CPP estão definidas as hipóteses em que incidirão os ritos ordinário e sumário(1), constando, em seu § 1º, inciso III, que será aplicado o rito sumaríssimo “para as infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da lei”, numa redação que, à primeira vista, parece ter conservado intacto o rito da Lei 9.099/95, que já o intitulava de sumaríssimo.
Ocorre que o § 4º do mesmo artigo 394 dispõe o seguinte:
“§4º . As disposições dos arts. 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código.”
Verifica-se claramente que o trecho “todos os procedimentos penais de primeiro grau ainda que não regulados neste Código” alcança o rito das infrações de menor potencial ofensivo (Lei 9.099/95) no que se refere a processos em trâmite no primeiro grau.
Não obstante ser a Lei 11.719/08 uma norma geral e a Lei 9.099/95 especial, o dispositivo acima citado, da forma como veio redigido, constitui exceção ao princípio Lex posterior generalis non derogat legi priori speciali. Segundo Carlos Maximiliano, o referido princípio pressupõe “não poder o aparecimento da norma ampla causar, só por si, sem mais nada, a queda da autoridade da prescrição especial vigente”(2), o que não ocorre no caso em tela onde as expressões “todos” e “ainda que não regulados neste Código” mostram com clareza o sentido da nova lei.
Interessa à presente análise, portanto, verificar o que dispõem os artigos 395 a 398(3), ou melhor, 395 a 397, já que o 398 está revogado.
A novidade dos ditos artigos, em síntese, foi a introdução da resposta escrita após o recebimento da denúncia (art. 396), com a subseqüente possibilidade de o juiz absolver sumariamente o réu (art. 397), além da menção, no art. 395, de causas de rejeição da denúncia, já previstas anteriormente no agora revogado art. 43 do CPP, e que passam a contar com o acréscimo de hipóteses e expressões como “falta de justa causa” e denúncia “manifestamente inepta”, que, na realidade, já integravam a ordem jurídica, devido a antiga e pacífica posição jurisprudencial e doutrinária.
Frise-se que a criação de uma resposta escrita do réu após o recebimento da denúncia, sucedida de uma oportunidade dada ao magistrado para dar fim à ação penal, representa um excepcional avanço, especialmente porque, antes disso, era inviável, segundo posição majoritária, o “trancamento” ou extinção da ação penal pelo próprio juiz do caso antes da sentença. Ou seja, imperava o entendimento de que, uma vez recebida a denúncia, não podia o magistrado reconsiderar a decisão que iniciou a ação penal, sendo necessária uma ordem de habeas corpus emanada de instância superior(4).
Quanto à existência de efeitos da nova Lei 11.719/08 sobre o procedimento dos Juizados, é possível que parte da doutrina venha a entender que o caput do art. 396 (“nos procedimentos ordinário e sumário...”) teria restringido os institutos da resposta escrita e absolvição sumária exclusivamente aos procedimentos ordinário e sumário, mas, se assim fosse, seria letra morta o § 4º do art. 394, que foi categórico ao estender sua aplicabilidade a “todos os procedimentos penais de primeiro grau ainda que não regulados neste Código”.
Fosse outro o sentido da recém editada norma, não haveria motivo para que o § 4º do art. 394 fizesse referência às “disposições dos arts. 395 a 398”, já que a resposta escrita e a absolvição sumária ocupam nada menos do que três dos quatro artigos ali mencionados (396, 396-A e 397), lembrando-se que o 398 foi revogado.
Afinal, conforme sustenta Carlos Maximiliano, “precisa ser inteligentemente compreendido e aplicado com alguma cautela o preceito clássico: ‘a disposição geral não revoga a especial’. Pode a regra geral ser concebida de modo que exclua qualquer exceção; ou enumerar taxativamente as únicas exceções que admite; ou, finalmente, criar um sistema completo e diferente do que decorre das normas positivas anteriores: nesses casos o poder eliminatório do preceito geral recente abrange também as disposições especiais antigas”(5).
Maria Helena Diniz sustenta que “a lex posterior apenas será aplicada se o legislador teve o propósito de afastar a anterior”(6), e, pela forma como está redigido o novo art. 394, § 4º do CPP, não se consegue vislumbrar outro propósito.
O detalhe a exigir maior atenção, e que pode ser causa de divergências doutrinárias ou questionamentos quanto à constitucionalidade da Lei 11.719/08, é que o art. 81 da Lei 9.099/95 prevê o recebimento da denúncia em audiência, após manifestação oral do defensor pugnando por sua rejeição:
“Art. 81. Aberta a audiência, será dada a palavra ao defensor para responder à acusação, após o que o juiz receberá, ou não, a denúncia ou queixa; havendo recebimento, serão ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e defesa, interrogando-se a seguir o acusado, se presente, passando-se imediatamente aos debates orais e à prolação da sentença.”
Se a nova lei prevê, no art. 396, que, “oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 dias”, verifica-se uma derrogação ao art. 81 da Lei 9.099/95.
Trata-se de derrogação, e não ab-rogação ou revogação, porque o rito dos artigos 396 a 397 do CPP não chega a atingir os atos de instrução e julgamento propriamente ditos, conservando-se intacta a vigência da parte final do art. 81 da Lei 9.099/95, a saber, “... serão ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e defesa, interrogando-se a seguir o acusado, se presente, passando-se imediatamente aos debates orais e à prolação da sentença”.
E “a abolição das disposições anteriores se dará nos limites da incompatibilidade” entre a norma nova e a antiga, ou seja, “se em um mesmo trecho existe uma parte conciliável e outra não, continua em vigor a primeira”(7).
Segundo a interpretação aqui exposta, portanto, sofreu modificação o procedimento adotado nos Juizados entre o momento do oferecimento de denúncia e o início efetivo da colheita da prova, ficando suprimida a manifestação oral da defesa antes do recebimento da peça acusatória e o juízo de prelibação exercido na própria audiência.
É que, evidentemente, não se pode simplesmente, “inserir a força” ou “encaixar” o rito previsto nos arts. 395 a 397 no procedimento da Lei 9.099/95 mantendo-o intacto em todas as suas demais etapas processuais, eis que algumas são desarmônicas e inconciliáveis com a nova lei. Nesse sentido, não se poderia manter a manifestação oral da defesa e o subseqüente recebimento ou rejeição da denúncia em audiência, e, ao mesmo tempo, promover a citação para resposta escrita em 10 dias caso restasse recebida a inicial acusatória, sob pena de se desdobrar a audiência do art. 81 da Lei 9.099/95 em duas. Esta opção, portanto, exigiria adicionar ao rito dos Juizados Criminais mais uma audiência, não prevista em nenhuma das duas leis.
Assim, tendo em vista a inconciliabilidade e desarmonia do novo procedimento dos arts. 395 a 397 do CPP com a primeira parte do rito do art. 81 da Lei 9.099/95, é de se concluir que este restou derrogado pela Lei 11.719/08.
A partir de agora, portanto, segundo a interpretação aqui sustentada, o juiz apreciará a denúncia em seu gabinete, de forma mais cautelosa e fundamentada, e seguirá o rito dos artigos 395 a 397 do CPP.
Ao analisar a denúncia, vislumbrando o magistrado alguma das hipóteses do art. 395, rejeita-la-á de plano. Se entender por recebê-la, fará isso em seu gabinete, em data anterior à AIJ, determinando, em seguida, a citação do réu para apresentar resposta escrita em 10 dias (art. 396). Apresentada esta, o juiz verificará se ocorrem as circunstâncias para absolvição sumária (art. 397), após o que ou absolverá o réu, ou designará audiência de instrução, que se iniciará já pelas oitivas, exatamente na ordem prevista na parte final do art. 81 da Lei 9.099/95.
É certo que a instituição da resposta escrita pela Lei 11.719/08, em se tratando de nova oportunidade de manifestação da defesa técnica, é algo em evidente consonância com a garantia constitucional da ampla defesa e contraditório (art. 5º, LV), bem como com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), já que se passa a permitir ao juiz da causa fazer cessar imediatamente o constrangimento ilegal em caso de ação penal indevida.
Por outro lado, a dilatação do procedimento dos Juizados com um novo ato, com prazo de 10 dias, e, ainda por cima, escrito e formal, pode ser vista como afronta à exigência constitucional de oralidade e celeridade (art. 98, I, CR: “procedimentos oral e sumaríssimo”).
Ocorre que, analisadas tais mudanças sob o prisma das garantias individuais, verifica-se que a imposição de uma defesa escrita, elaborada por advogado constituído ou defensor nomeado pelo juiz (art. 396-A, § 2º) veio cumprir uma missão extremamente necessária nos Juizados, onde a noção de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual, celeridade, conciliação e transação (art. 2º, Lei 9.099/95) vinha induzindo o indivíduo acusado a não buscar a assistência técnica na fase preliminar, levando-o, muitas vezes, a admitir ônus e restrições em sua liberdade sem a necessária justa causa, num país em que a Constituição Federal “lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado” (STF - HC 82.354/PR - min. Sepúlveda Pertence - DJ 24/9/04)(8).
E, mesmo em relação à efetividade da defesa técnica na própria audiência de instrução e julgamento nos Juizados, onde a presença do defensor do réu já era obrigatória, o dia-a-dia forense demonstra que os jurisdicionados dependentes da Defensoria Pública costumam ter ali, na própria audiência, o seu primeiro contato com o defensor. Agora, com a Lei 11.719/08, a exigência de uma peça de defesa escrita, cuja falta acarretará nulidade absoluta(9), exigirá o encontro prévio entre defensor e acusado, fazendo com que a imprescindível “assistência de advogado” (art. 5º, LXIII, CRFB) seja mais do que um mero simulacro.
Nesse sentido, o raciocínio aqui exposto aponta para a derrogação do art. 81 da Lei 9.099/95 pela Lei 11.719/08, não se vislumbrando inconstitucionalidade nesta, já que a doutrina garantista recomenda que, diante de conflitos entre normas constitucionais (art. 98, I versus art. 5º, LV e LXIII), a balança penda em favor da liberdade e das garantias individuais, porquanto estas últimas ostentam o status constitucional de cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV).
Notas
(1) “Art. 394. O procedimento será comum ou especial. § 1º O procedimento comum será ordinário, sumário ou sumaríssimo: I - ordinário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade; II - sumário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada seja inferior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade; III - sumaríssimo, para as infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da lei.”
(2) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª ed., Rio de Janeiro: Forense: 2006, p. 294.
(3) “Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I - for manifestamente inepta; II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.” “Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias. Parágrafo único. No caso de citação por edital, o prazo para a defesa começará a fluir a partir do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.” “Art. 396-A. Na resposta, o acusado poderá argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário. §1º A exceção será processada em apartado, nos termos dos arts. 95 a 112 deste Código. §2º Não apresentada a resposta no prazo legal, ou se o acusado, citado, não constituir defensor, o juiz nomeará defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por 10 (dez) dias.” “Art. 397. Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou IV - extinta a punibilidade do agente. Art. 398. Revogado.”
(4) STJ, HC 86.903/DF, min. Napoleão Nunes, 5ª T. - j. 28/5/2008, DJ 30/6/2008; STJ, EDecl no REsp. 173.395/PA, min. Fernando Gonçalves, 6ª T - j. 27/6/2000, DJ 2/10/2000; e STF, RHC 51423/PA, min. Aliomar Baleeiro, Pleno, j. 17/10/1973, DJ 2/1/1974.
(5) MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 294.
(6) DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 35.
(7) MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 293.
(8) Este acórdão, que inaugurou uma linha jurisprudencial firme na Suprema Corte acerca do direito do investigado acessar autos de inquérito, deixou claro que, não obstante a não incidência de contraditório e ampla defesa na fase inquisitorial, o investigado é sujeito de direitos, devendo-se lhe assegurar garantias como a assistência de advogado e proteção contra a auto-incriminação (art. 5º, LXIII, CRFB).
(9) Diferentemente da controvérsia acerca do art. 514 do CPP (nulidade relativa ou absoluta), a “resposta escrita” da nova Lei 11.719/08 constitui peça a ser apresentada após o recebimento da denúncia, portanto, quando já em curso a ação penal, momento em que a incidência das garantias de ampla defesa e contraditório é inquestionável.
Ricardo Sidi
Advogado criminalista e pós-graduado em Direito Penal Empresarial pela PUC/RJ
Ricardo Sidi
Advogado criminalista e pós-graduado em Direito Penal Empresarial pela PUC/RJ
SIDI, Ricardo. A nova Lei 11.719/08 e seus efeitos sobre o rito dos juizados especiais criminais. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 193, p. 12-13, dez. 2008.
A Lei 11.719/08 trouxe significativas alterações aos ritos ordinário e sumário, sendo a intenção deste artigo demonstrar que, também em relação ao procedimento da Lei 9.099/95, a nova lei trouxe dispositivos relevantes, que merecem atenção da doutrina.
Como se trata de norma recentíssima, ainda não existe, por óbvio, consenso doutrinário ou jurisprudencial acerca de todos os seus efeitos, o que só costuma ocorrer depois de numerosas contribuições acadêmicas.
Na nova redação do artigo 394 do CPP estão definidas as hipóteses em que incidirão os ritos ordinário e sumário(1), constando, em seu § 1º, inciso III, que será aplicado o rito sumaríssimo “para as infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da lei”, numa redação que, à primeira vista, parece ter conservado intacto o rito da Lei 9.099/95, que já o intitulava de sumaríssimo.
Ocorre que o § 4º do mesmo artigo 394 dispõe o seguinte:
“§4º . As disposições dos arts. 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código.”
Verifica-se claramente que o trecho “todos os procedimentos penais de primeiro grau ainda que não regulados neste Código” alcança o rito das infrações de menor potencial ofensivo (Lei 9.099/95) no que se refere a processos em trâmite no primeiro grau.
Não obstante ser a Lei 11.719/08 uma norma geral e a Lei 9.099/95 especial, o dispositivo acima citado, da forma como veio redigido, constitui exceção ao princípio Lex posterior generalis non derogat legi priori speciali. Segundo Carlos Maximiliano, o referido princípio pressupõe “não poder o aparecimento da norma ampla causar, só por si, sem mais nada, a queda da autoridade da prescrição especial vigente”(2), o que não ocorre no caso em tela onde as expressões “todos” e “ainda que não regulados neste Código” mostram com clareza o sentido da nova lei.
Interessa à presente análise, portanto, verificar o que dispõem os artigos 395 a 398(3), ou melhor, 395 a 397, já que o 398 está revogado.
A novidade dos ditos artigos, em síntese, foi a introdução da resposta escrita após o recebimento da denúncia (art. 396), com a subseqüente possibilidade de o juiz absolver sumariamente o réu (art. 397), além da menção, no art. 395, de causas de rejeição da denúncia, já previstas anteriormente no agora revogado art. 43 do CPP, e que passam a contar com o acréscimo de hipóteses e expressões como “falta de justa causa” e denúncia “manifestamente inepta”, que, na realidade, já integravam a ordem jurídica, devido a antiga e pacífica posição jurisprudencial e doutrinária.
Frise-se que a criação de uma resposta escrita do réu após o recebimento da denúncia, sucedida de uma oportunidade dada ao magistrado para dar fim à ação penal, representa um excepcional avanço, especialmente porque, antes disso, era inviável, segundo posição majoritária, o “trancamento” ou extinção da ação penal pelo próprio juiz do caso antes da sentença. Ou seja, imperava o entendimento de que, uma vez recebida a denúncia, não podia o magistrado reconsiderar a decisão que iniciou a ação penal, sendo necessária uma ordem de habeas corpus emanada de instância superior(4).
Quanto à existência de efeitos da nova Lei 11.719/08 sobre o procedimento dos Juizados, é possível que parte da doutrina venha a entender que o caput do art. 396 (“nos procedimentos ordinário e sumário...”) teria restringido os institutos da resposta escrita e absolvição sumária exclusivamente aos procedimentos ordinário e sumário, mas, se assim fosse, seria letra morta o § 4º do art. 394, que foi categórico ao estender sua aplicabilidade a “todos os procedimentos penais de primeiro grau ainda que não regulados neste Código”.
Fosse outro o sentido da recém editada norma, não haveria motivo para que o § 4º do art. 394 fizesse referência às “disposições dos arts. 395 a 398”, já que a resposta escrita e a absolvição sumária ocupam nada menos do que três dos quatro artigos ali mencionados (396, 396-A e 397), lembrando-se que o 398 foi revogado.
Afinal, conforme sustenta Carlos Maximiliano, “precisa ser inteligentemente compreendido e aplicado com alguma cautela o preceito clássico: ‘a disposição geral não revoga a especial’. Pode a regra geral ser concebida de modo que exclua qualquer exceção; ou enumerar taxativamente as únicas exceções que admite; ou, finalmente, criar um sistema completo e diferente do que decorre das normas positivas anteriores: nesses casos o poder eliminatório do preceito geral recente abrange também as disposições especiais antigas”(5).
Maria Helena Diniz sustenta que “a lex posterior apenas será aplicada se o legislador teve o propósito de afastar a anterior”(6), e, pela forma como está redigido o novo art. 394, § 4º do CPP, não se consegue vislumbrar outro propósito.
O detalhe a exigir maior atenção, e que pode ser causa de divergências doutrinárias ou questionamentos quanto à constitucionalidade da Lei 11.719/08, é que o art. 81 da Lei 9.099/95 prevê o recebimento da denúncia em audiência, após manifestação oral do defensor pugnando por sua rejeição:
“Art. 81. Aberta a audiência, será dada a palavra ao defensor para responder à acusação, após o que o juiz receberá, ou não, a denúncia ou queixa; havendo recebimento, serão ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e defesa, interrogando-se a seguir o acusado, se presente, passando-se imediatamente aos debates orais e à prolação da sentença.”
Se a nova lei prevê, no art. 396, que, “oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 dias”, verifica-se uma derrogação ao art. 81 da Lei 9.099/95.
Trata-se de derrogação, e não ab-rogação ou revogação, porque o rito dos artigos 396 a 397 do CPP não chega a atingir os atos de instrução e julgamento propriamente ditos, conservando-se intacta a vigência da parte final do art. 81 da Lei 9.099/95, a saber, “... serão ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e defesa, interrogando-se a seguir o acusado, se presente, passando-se imediatamente aos debates orais e à prolação da sentença”.
E “a abolição das disposições anteriores se dará nos limites da incompatibilidade” entre a norma nova e a antiga, ou seja, “se em um mesmo trecho existe uma parte conciliável e outra não, continua em vigor a primeira”(7).
Segundo a interpretação aqui exposta, portanto, sofreu modificação o procedimento adotado nos Juizados entre o momento do oferecimento de denúncia e o início efetivo da colheita da prova, ficando suprimida a manifestação oral da defesa antes do recebimento da peça acusatória e o juízo de prelibação exercido na própria audiência.
É que, evidentemente, não se pode simplesmente, “inserir a força” ou “encaixar” o rito previsto nos arts. 395 a 397 no procedimento da Lei 9.099/95 mantendo-o intacto em todas as suas demais etapas processuais, eis que algumas são desarmônicas e inconciliáveis com a nova lei. Nesse sentido, não se poderia manter a manifestação oral da defesa e o subseqüente recebimento ou rejeição da denúncia em audiência, e, ao mesmo tempo, promover a citação para resposta escrita em 10 dias caso restasse recebida a inicial acusatória, sob pena de se desdobrar a audiência do art. 81 da Lei 9.099/95 em duas. Esta opção, portanto, exigiria adicionar ao rito dos Juizados Criminais mais uma audiência, não prevista em nenhuma das duas leis.
Assim, tendo em vista a inconciliabilidade e desarmonia do novo procedimento dos arts. 395 a 397 do CPP com a primeira parte do rito do art. 81 da Lei 9.099/95, é de se concluir que este restou derrogado pela Lei 11.719/08.
A partir de agora, portanto, segundo a interpretação aqui sustentada, o juiz apreciará a denúncia em seu gabinete, de forma mais cautelosa e fundamentada, e seguirá o rito dos artigos 395 a 397 do CPP.
Ao analisar a denúncia, vislumbrando o magistrado alguma das hipóteses do art. 395, rejeita-la-á de plano. Se entender por recebê-la, fará isso em seu gabinete, em data anterior à AIJ, determinando, em seguida, a citação do réu para apresentar resposta escrita em 10 dias (art. 396). Apresentada esta, o juiz verificará se ocorrem as circunstâncias para absolvição sumária (art. 397), após o que ou absolverá o réu, ou designará audiência de instrução, que se iniciará já pelas oitivas, exatamente na ordem prevista na parte final do art. 81 da Lei 9.099/95.
É certo que a instituição da resposta escrita pela Lei 11.719/08, em se tratando de nova oportunidade de manifestação da defesa técnica, é algo em evidente consonância com a garantia constitucional da ampla defesa e contraditório (art. 5º, LV), bem como com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), já que se passa a permitir ao juiz da causa fazer cessar imediatamente o constrangimento ilegal em caso de ação penal indevida.
Por outro lado, a dilatação do procedimento dos Juizados com um novo ato, com prazo de 10 dias, e, ainda por cima, escrito e formal, pode ser vista como afronta à exigência constitucional de oralidade e celeridade (art. 98, I, CR: “procedimentos oral e sumaríssimo”).
Ocorre que, analisadas tais mudanças sob o prisma das garantias individuais, verifica-se que a imposição de uma defesa escrita, elaborada por advogado constituído ou defensor nomeado pelo juiz (art. 396-A, § 2º) veio cumprir uma missão extremamente necessária nos Juizados, onde a noção de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual, celeridade, conciliação e transação (art. 2º, Lei 9.099/95) vinha induzindo o indivíduo acusado a não buscar a assistência técnica na fase preliminar, levando-o, muitas vezes, a admitir ônus e restrições em sua liberdade sem a necessária justa causa, num país em que a Constituição Federal “lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado” (STF - HC 82.354/PR - min. Sepúlveda Pertence - DJ 24/9/04)(8).
E, mesmo em relação à efetividade da defesa técnica na própria audiência de instrução e julgamento nos Juizados, onde a presença do defensor do réu já era obrigatória, o dia-a-dia forense demonstra que os jurisdicionados dependentes da Defensoria Pública costumam ter ali, na própria audiência, o seu primeiro contato com o defensor. Agora, com a Lei 11.719/08, a exigência de uma peça de defesa escrita, cuja falta acarretará nulidade absoluta(9), exigirá o encontro prévio entre defensor e acusado, fazendo com que a imprescindível “assistência de advogado” (art. 5º, LXIII, CRFB) seja mais do que um mero simulacro.
Nesse sentido, o raciocínio aqui exposto aponta para a derrogação do art. 81 da Lei 9.099/95 pela Lei 11.719/08, não se vislumbrando inconstitucionalidade nesta, já que a doutrina garantista recomenda que, diante de conflitos entre normas constitucionais (art. 98, I versus art. 5º, LV e LXIII), a balança penda em favor da liberdade e das garantias individuais, porquanto estas últimas ostentam o status constitucional de cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV).
Notas
(1) “Art. 394. O procedimento será comum ou especial. § 1º O procedimento comum será ordinário, sumário ou sumaríssimo: I - ordinário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade; II - sumário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada seja inferior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade; III - sumaríssimo, para as infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da lei.”
(2) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª ed., Rio de Janeiro: Forense: 2006, p. 294.
(3) “Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I - for manifestamente inepta; II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.” “Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias. Parágrafo único. No caso de citação por edital, o prazo para a defesa começará a fluir a partir do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.” “Art. 396-A. Na resposta, o acusado poderá argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário. §1º A exceção será processada em apartado, nos termos dos arts. 95 a 112 deste Código. §2º Não apresentada a resposta no prazo legal, ou se o acusado, citado, não constituir defensor, o juiz nomeará defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por 10 (dez) dias.” “Art. 397. Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou IV - extinta a punibilidade do agente. Art. 398. Revogado.”
(4) STJ, HC 86.903/DF, min. Napoleão Nunes, 5ª T. - j. 28/5/2008, DJ 30/6/2008; STJ, EDecl no REsp. 173.395/PA, min. Fernando Gonçalves, 6ª T - j. 27/6/2000, DJ 2/10/2000; e STF, RHC 51423/PA, min. Aliomar Baleeiro, Pleno, j. 17/10/1973, DJ 2/1/1974.
(5) MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 294.
(6) DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 35.
(7) MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 293.
(8) Este acórdão, que inaugurou uma linha jurisprudencial firme na Suprema Corte acerca do direito do investigado acessar autos de inquérito, deixou claro que, não obstante a não incidência de contraditório e ampla defesa na fase inquisitorial, o investigado é sujeito de direitos, devendo-se lhe assegurar garantias como a assistência de advogado e proteção contra a auto-incriminação (art. 5º, LXIII, CRFB).
(9) Diferentemente da controvérsia acerca do art. 514 do CPP (nulidade relativa ou absoluta), a “resposta escrita” da nova Lei 11.719/08 constitui peça a ser apresentada após o recebimento da denúncia, portanto, quando já em curso a ação penal, momento em que a incidência das garantias de ampla defesa e contraditório é inquestionável.
Ricardo Sidi
Advogado criminalista e pós-graduado em Direito Penal Empresarial pela PUC/RJ
O interesse de agir enquanto condição legitimante da ação penal.
O interesse de agir enquanto condição legitimante da ação penal: sobre a possibilidade do pedido de arquivamento do inquérito policial ou das peças de investigação quando cabível o perdão judicial
Domingos Barroso da Costa
Bacharel em Direito pela UFMG; especialista em Criminologia pelo Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas/Acadepol-MG e em Direito Público, pela Unigranrio/Praetorium; mestrando em Psicologia pela PUC/Minas
COSTA, Domingos Barroso da. O interesse de agir enquanto condição legitimante da ação penal: sobre a possibilidade do pedido de arquivamento do inquérito policial ou das peças de investigação quando cabível o perdão judicial. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 195, p. 13-14, fev. 2009.
1. Introdução: da supremacia das formas à instrumentalidade do processo
Superada a miopia do positivismo jurídico, contemporaneamente se sabe da impossibilidade de dissociar o Direito dos fenômenos que marcam a evolução da sociedade. A lei já não é bastante em si e a justiça não mais se dobra à primazia das formas. Em suma, legalidade e legitimidade são conceitos que não podem ser confundidos, emergindo esta não mais da cega obediência a formalidades, mas da adequação entre a lei — sua criação, interpretação e aplicação — e os valores que fundam e evoluem com determinado corpo social, refletindo os interesses da coletividade que o compõe.
O papel de mera estrutura ordenadora ficou no passado, cabendo hodiernamente ao Direito a condição de ativo instrumento de transformação social. Por um lado, perdem força as formas, tão absolutas enquanto permaneceu a crença numa neutralidade passiva dos que criavam e aplicavam o Direito; por outro, ganha a busca pela justiça e sua mais equânime distribuição.
A emergência de um novo constitucionalismo anunciou o progressivo declínio do positivismo a partir da segunda metade do século passado. Em razão do surgimento de novas demandas sociais, a rigidez das leis e o engessamento de seus intérpretes acabaram suplantados pela regência plástica dos princípios, normas que se mostram capazes de conferir equilíbrio e unicidade ao ordenamento jurídico, por possibilitarem uma aplicação proporcional da lei à realidade concreta, harmonizando o Direito com a evolução e complexidade da sociedade dita pós-moderna. Desabando a estrutura vertical que se apoiava em mera legalidade, a fixidez totalitária da gaiola de ferro(1) de métodos que marcou a Modernidade acabou sendo rompida por transformações drásticas na tecitura social, cujos laços não mais se fundam e sustentam nas autoridades incontestes de outrora. Nessa dinâmica, com o aumento quantitativo e qualitativo das demandas por cidadania e respeito aos direitos fundamentais(2), somente se pode concluir que a contenção das individualidades horizontalmente situadas depende agora de um reconhecimento da legitimidade das normas que lhes são impostas.
Observa-se, pois, que as regras deram lugar aos princípios, num movimento de superação da forma pelo conteúdo, o que bem se evidencia no caráter instrumental que contemporaneamente se confere ao processo.
Assim como o Direito deve servir à realização dos valores da cultura de que irradia, de modo a assegurar seu equilíbrio e manutenção, devem as formas processuais ser instrumento de efetivação dos direitos materiais. Não mais se admite que o conteúdo se perca em razão de vícios formais, do que decorre a atual relativização das causas de nulidade do processo, tão caras aos positivistas.
No que concerne a seus reflexos sobre o direito processual, a evolução narrada produziu efeitos em todas suas vertentes. E, na condição de protagonistas dessa dinâmica de adequação do valor conferido às formas, emergem princípios como o da instrumentalidade e efetividade do processo, neste abrangido o princípio da celeridade, positivado como direito fundamental no art. 5º, LXXVIII, da CF.
Contudo, de se destacar que o presente estudo detém-se na importância da plena aplicação desses princípios ao processo penal, mais especificamente no que concerne ao interesse de agir, enquanto condição legitimante da ação penal. Neste ponto do debate, cabe afirmar que a condição legitimante que se atribui ao interesse de agir deve-se justamente ao fato de em seu âmbito serem analisadas a necessidade e a utilidade do processo, tendo em vista os fins que lhe confere o Direito.
Não há como se aplicar uma pena criminal sem o devido processo, razão pela qual, em sede de interesse de agir, sua necessidade é presumida. Contudo, no âmbito da utilidade, muito ainda há para se discutir, mesmo porque é de sua constatação que se conclui pela legitimidade da submissão de alguém à persecução penal em juízo.
A esse respeito, ensina Eugênio Pacelli:
“No âmbito específico do processo penal [...] desloca-se para o interesse de agir a preocupação com a efetividade do processo, de modo a ser possível afirmar que este, enquanto instrumento da jurisdição, deve apresentar, em juízo prévio e necessariamente anterior, um mínimo de viabilidade de satisfação futura da pretensão que informa o seu conteúdo. É dizer: sob perspectiva de sua efetividade, o processo deve mostrar-se, desde a sua instauração, apto a realizar os diversos escopos da jurisdição, isto é, revelar-se útil. Por isso, fala-se em interesse-utilidade” (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 6ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pp. 84/85).
Como cediço, serve o processo penal ao exercício da coerção punitiva pelo Estado (jus puniendi), que detém seu monopólio, tratando-se de verdadeira — e indispensável, como afirmado — garantia do indivíduo contra eventuais abusos por parte do poder público. Sabe-se, ainda, que a forma por excelência do exercício dessa coerção dá-se com a aplicação da pena privativa de liberdade, à qual a doutrina atribui finalidades de prevenção especial e geral, tanto positiva quanto negativa.
Porém, considerando-se o esvaziamento dos objetivos de inclusão que se vinculavam à pena privativa de liberdade — especialmente observado a partir da década de 80 do século passado —, aqui se toma essa sanção penal tão-somente em seu viés retributivo. Conforme bem apontado por Loïc Wacquant, os ideais de reintegração social foram substituídos por uma “nova penalogia”, que mais diz de uma “reciclagem de detritos sociais”(3).
Deve-se considerar, portanto, que a análise do interesse de agir como condição da ação no processo penal passa necessariamente pelo exame, no caso concreto, da necessidade e, principalmente, da utilidade desse instrumento para a aplicação, ao autor do crime, de uma pena que represente efetiva retribuição pela lesão causada à vítima e à sociedade.
2. Sobre a falta de interesse de agir – ou ilegitimidade do processo – nos casos em que cabível o perdão judicial
Expostas as considerações introdutórias, cabe agora tratar da situação específica a cuja abordagem aqui se dedica, qual seja, da possibilidade de o Ministério Público, enquanto titular da ação penal, nos casos em que verificar cabível o perdão judicial, deixar de oferecer denúncia, requerendo o arquivamento do caderno investigatório por falta de interesse-utilidade.
Nada mais plausível e viável, fundando-se tal possibilidade em argumentos análogos àqueles nos quais se arrima a possibilidade do pedido de arquivamento com base na conclusão acerca de uma futura prescrição a partir da pena ideal. Em ambas as hipóteses — no caso do perdão judicial e da prescrição pela pena ideal —, fica “demonstrada, de plano, a inutilidade da atividade processual correspondente”(4).
Afinal, como claramente define o art. 121, § 5º, do CP, tratando da hipótese de homicídio culposo, o perdão judicial corresponde à possibilidade de o juiz “deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”(5). Ou seja, diz o dispositivo da inutilidade da pena estatal diante de uma conduta cujas consequências, por si só, já representem castigo ou sanção suficiente a seu agente provocador, de gravidade tal que torna até mesmo desnecessária a intervenção punitiva do Estado. E, se inútil a pena, inútil o processo enquanto instrumento que se destina a viabilizar sua aplicação(6).
O que se deve destacar é que aqui se filia à posição de Damásio de Jesus, segundo o qual o perdão judicial não se trata de mera faculdade do juiz, mas, sim, de “Direito Penal público subjetivo de liberdade”(7). Nessa esteira, pode-se concluir que assiste ao promotor de justiça, enquanto titular da ação penal, a possibilidade de requerer o arquivamento do inquérito policial ou das peças informativas em constatando que as circunstâncias que animam o caso concreto se subsumem àquelas em que se permite o perdão judicial, com base na ausência de interesse-utilidade de agir. Não concordando o juiz, poderá se socorrer do previsto na última parte do art. 28 do CPP e, assim, remeter o inquérito ou as peças de investigação ao procurador-geral de Justiça, que “oferecerá a denúncia, designará outro órgão para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender”.
Entendimentos contrários ao acima exposto terminam por afrontar princípios processuais como, dentre outros, o da instrumentalidade e da efetividade. De certa forma, pode-se concluir que processos deflagrados em condições ensejadoras do perdão judicial — ou seja, em que não há interesse de agir devido à inutilidade do processo — são natimortos. Por essa razão, acabam determinando gastos desnecessários para o Estado e maior sobrecarga da justiça penal, já tão criticada em razão de um alardeado acúmulo de processos. Ante tal consideração, pode-se, em última instância, afirmar que a tese ora desenvolvida contribui reflexamente para a efetiva realização do disposto e programado no art. 5º, LXXVIII, segundo o qual “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
3. Considerações finais
A crise de legitimidade atravessada pelo sistema penal reclama intervenções certas por parte dos operadores do Direito no sentido de adequar o funcionamento dessa estrutura aos princípios constitucionais e interesse público. Conforme exposto, o legalismo de formalidades absolutas já não condiciona a atuação de advogados, promotores ou juízes, aos quais hoje cabe a função maior de amoldar a lei aos ideais constitucionais e à dinâmica social, sempre visando à efetivação da justiça. O pós-positivismo deu vida à lei morta que caracterizava o positivismo jurídico, animando o Direito com um espírito transformador.
“Essa transformação da ciência jurídica, ao dar ao jurista uma tarefa de construção — e não mais de simples revelação —, confere-lhe maior dignidade e responsabilidade, já que dele se espera uma atividade essencial para dar efetividade aos planos da Constituição, ou seja, aos projetos do Estado e às aspirações da sociedade” (MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. Volume 1: Teoria Geral do Processo. São Paulo: RT, 2006, p. 46).
Se tudo é proibido, nada é proibido, motivo pelo qual o excesso de leis incriminadoras explícito ao ponto de revelar a ineficácia do sistema penal brasileiro exige uma postura crítica dos juristas, que são responsáveis pelo resgate de sua legitimidade, logo, de sua credibilidade(8). Seja pelas vias processuais, seja através da aplicação de princípios próprios ao direito material, deve-se lutar pela mínima intervenção penal, a cujos drásticos efeitos somente devam ser submetidos casos que representem violação a interesses essenciais à vida em sociedade, considerada sua condição de ultima ratio. E, dentre esses, certamente não se inclui o caso dos agentes de cujas condutas decorrem efeitos tão danosos a si próprios a ponto de tornar inútil a punição estatal(9).
Nesses moldes, retomando o fio processual da questão inicialmente proposta, fecha-se o estudo com o devido destaque à importância da apuração da utilidade do processo enquanto condicionante da legitimidade da persecutio criminis in judicio. Um processo que não é meio eficaz ao alcance dos objetivos que o justificam é inútil e, por conseguinte, jamais será legítimo. Contemporaneamente pode-se afirmar, portanto, que o interesse de agir é verdadeira condição constitucionalizante da ação penal, vez que manifesta o caráter instrumental do processo na conformação do Direito aos ideais constitucionais e à dinâmica social. Harmoniza, assim, a mútua interferência entre essas inseparáveis instâncias, caracterizando-se como uma das formas essenciais à garantia de uma sintonia entre o Direito e o compasso de evolução da sociedade.
Notas
(1) Expressão cunhada por Max Weber.
(2) YOUNG, Jock. A Sociedade Excludente: Exclusão Social, Criminalidade e Diferença na Modernidade Recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
(3) WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
(4) OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 6ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 85.
(5) Não se cuida aqui, como se pode verificar, da forma de perdão judicial de que trata a Lei nº 9807/99, em seu art. 13.
(6) DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 13ª ed., São Paulo: Malheiros, 2008.
(7) JESUS, Damásio E. de apud GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 6ª ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 774. Por esse mesmo fundamento, ainda com Damásio, acompanhado por Luiz Flávio Gomes, Maurício Antônio Ribeiro Lopes e Rogério Greco (GRECO, ob. cit., p. 774), também se entende pela extensão das hipóteses em que cabível o perdão judicial a práticas que se enquadrem nos arts. 302 e 303 do CTB. Aliás, transferindo-se a abordagem da questão para o âmbito das condições da ação — portanto, para a atuação ministerial —, torna-se até mesmo desnecessária tal colocação, pois, sob tal enfoque, dispensável seria uma expressa autorização legal para cada caso em que possível a aplicação do perdão, bastando a previsão da possibilidade de se deixar de aplicar a pena em razão de sua inutilidade, para o que bastam os moldes dispostos no art. 121, § 5º, do CP.
(8) Há quem cogite que o Brasil já tenha superado a marca de 5.000 condutas tipificadas.
(9) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas: A Perda da Legitimidade do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
Domingos Barroso da Costa
Bacharel em Direito pela UFMG; especialista em Criminologia pelo Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas/Acadepol-MG e em Direito Público, pela Unigranrio/Praetorium; mestrando em Psicologia pela PUC/Minas
Domingos Barroso da Costa
Bacharel em Direito pela UFMG; especialista em Criminologia pelo Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas/Acadepol-MG e em Direito Público, pela Unigranrio/Praetorium; mestrando em Psicologia pela PUC/Minas
COSTA, Domingos Barroso da. O interesse de agir enquanto condição legitimante da ação penal: sobre a possibilidade do pedido de arquivamento do inquérito policial ou das peças de investigação quando cabível o perdão judicial. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 195, p. 13-14, fev. 2009.
1. Introdução: da supremacia das formas à instrumentalidade do processo
Superada a miopia do positivismo jurídico, contemporaneamente se sabe da impossibilidade de dissociar o Direito dos fenômenos que marcam a evolução da sociedade. A lei já não é bastante em si e a justiça não mais se dobra à primazia das formas. Em suma, legalidade e legitimidade são conceitos que não podem ser confundidos, emergindo esta não mais da cega obediência a formalidades, mas da adequação entre a lei — sua criação, interpretação e aplicação — e os valores que fundam e evoluem com determinado corpo social, refletindo os interesses da coletividade que o compõe.
O papel de mera estrutura ordenadora ficou no passado, cabendo hodiernamente ao Direito a condição de ativo instrumento de transformação social. Por um lado, perdem força as formas, tão absolutas enquanto permaneceu a crença numa neutralidade passiva dos que criavam e aplicavam o Direito; por outro, ganha a busca pela justiça e sua mais equânime distribuição.
A emergência de um novo constitucionalismo anunciou o progressivo declínio do positivismo a partir da segunda metade do século passado. Em razão do surgimento de novas demandas sociais, a rigidez das leis e o engessamento de seus intérpretes acabaram suplantados pela regência plástica dos princípios, normas que se mostram capazes de conferir equilíbrio e unicidade ao ordenamento jurídico, por possibilitarem uma aplicação proporcional da lei à realidade concreta, harmonizando o Direito com a evolução e complexidade da sociedade dita pós-moderna. Desabando a estrutura vertical que se apoiava em mera legalidade, a fixidez totalitária da gaiola de ferro(1) de métodos que marcou a Modernidade acabou sendo rompida por transformações drásticas na tecitura social, cujos laços não mais se fundam e sustentam nas autoridades incontestes de outrora. Nessa dinâmica, com o aumento quantitativo e qualitativo das demandas por cidadania e respeito aos direitos fundamentais(2), somente se pode concluir que a contenção das individualidades horizontalmente situadas depende agora de um reconhecimento da legitimidade das normas que lhes são impostas.
Observa-se, pois, que as regras deram lugar aos princípios, num movimento de superação da forma pelo conteúdo, o que bem se evidencia no caráter instrumental que contemporaneamente se confere ao processo.
Assim como o Direito deve servir à realização dos valores da cultura de que irradia, de modo a assegurar seu equilíbrio e manutenção, devem as formas processuais ser instrumento de efetivação dos direitos materiais. Não mais se admite que o conteúdo se perca em razão de vícios formais, do que decorre a atual relativização das causas de nulidade do processo, tão caras aos positivistas.
No que concerne a seus reflexos sobre o direito processual, a evolução narrada produziu efeitos em todas suas vertentes. E, na condição de protagonistas dessa dinâmica de adequação do valor conferido às formas, emergem princípios como o da instrumentalidade e efetividade do processo, neste abrangido o princípio da celeridade, positivado como direito fundamental no art. 5º, LXXVIII, da CF.
Contudo, de se destacar que o presente estudo detém-se na importância da plena aplicação desses princípios ao processo penal, mais especificamente no que concerne ao interesse de agir, enquanto condição legitimante da ação penal. Neste ponto do debate, cabe afirmar que a condição legitimante que se atribui ao interesse de agir deve-se justamente ao fato de em seu âmbito serem analisadas a necessidade e a utilidade do processo, tendo em vista os fins que lhe confere o Direito.
Não há como se aplicar uma pena criminal sem o devido processo, razão pela qual, em sede de interesse de agir, sua necessidade é presumida. Contudo, no âmbito da utilidade, muito ainda há para se discutir, mesmo porque é de sua constatação que se conclui pela legitimidade da submissão de alguém à persecução penal em juízo.
A esse respeito, ensina Eugênio Pacelli:
“No âmbito específico do processo penal [...] desloca-se para o interesse de agir a preocupação com a efetividade do processo, de modo a ser possível afirmar que este, enquanto instrumento da jurisdição, deve apresentar, em juízo prévio e necessariamente anterior, um mínimo de viabilidade de satisfação futura da pretensão que informa o seu conteúdo. É dizer: sob perspectiva de sua efetividade, o processo deve mostrar-se, desde a sua instauração, apto a realizar os diversos escopos da jurisdição, isto é, revelar-se útil. Por isso, fala-se em interesse-utilidade” (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 6ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pp. 84/85).
Como cediço, serve o processo penal ao exercício da coerção punitiva pelo Estado (jus puniendi), que detém seu monopólio, tratando-se de verdadeira — e indispensável, como afirmado — garantia do indivíduo contra eventuais abusos por parte do poder público. Sabe-se, ainda, que a forma por excelência do exercício dessa coerção dá-se com a aplicação da pena privativa de liberdade, à qual a doutrina atribui finalidades de prevenção especial e geral, tanto positiva quanto negativa.
Porém, considerando-se o esvaziamento dos objetivos de inclusão que se vinculavam à pena privativa de liberdade — especialmente observado a partir da década de 80 do século passado —, aqui se toma essa sanção penal tão-somente em seu viés retributivo. Conforme bem apontado por Loïc Wacquant, os ideais de reintegração social foram substituídos por uma “nova penalogia”, que mais diz de uma “reciclagem de detritos sociais”(3).
Deve-se considerar, portanto, que a análise do interesse de agir como condição da ação no processo penal passa necessariamente pelo exame, no caso concreto, da necessidade e, principalmente, da utilidade desse instrumento para a aplicação, ao autor do crime, de uma pena que represente efetiva retribuição pela lesão causada à vítima e à sociedade.
2. Sobre a falta de interesse de agir – ou ilegitimidade do processo – nos casos em que cabível o perdão judicial
Expostas as considerações introdutórias, cabe agora tratar da situação específica a cuja abordagem aqui se dedica, qual seja, da possibilidade de o Ministério Público, enquanto titular da ação penal, nos casos em que verificar cabível o perdão judicial, deixar de oferecer denúncia, requerendo o arquivamento do caderno investigatório por falta de interesse-utilidade.
Nada mais plausível e viável, fundando-se tal possibilidade em argumentos análogos àqueles nos quais se arrima a possibilidade do pedido de arquivamento com base na conclusão acerca de uma futura prescrição a partir da pena ideal. Em ambas as hipóteses — no caso do perdão judicial e da prescrição pela pena ideal —, fica “demonstrada, de plano, a inutilidade da atividade processual correspondente”(4).
Afinal, como claramente define o art. 121, § 5º, do CP, tratando da hipótese de homicídio culposo, o perdão judicial corresponde à possibilidade de o juiz “deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”(5). Ou seja, diz o dispositivo da inutilidade da pena estatal diante de uma conduta cujas consequências, por si só, já representem castigo ou sanção suficiente a seu agente provocador, de gravidade tal que torna até mesmo desnecessária a intervenção punitiva do Estado. E, se inútil a pena, inútil o processo enquanto instrumento que se destina a viabilizar sua aplicação(6).
O que se deve destacar é que aqui se filia à posição de Damásio de Jesus, segundo o qual o perdão judicial não se trata de mera faculdade do juiz, mas, sim, de “Direito Penal público subjetivo de liberdade”(7). Nessa esteira, pode-se concluir que assiste ao promotor de justiça, enquanto titular da ação penal, a possibilidade de requerer o arquivamento do inquérito policial ou das peças informativas em constatando que as circunstâncias que animam o caso concreto se subsumem àquelas em que se permite o perdão judicial, com base na ausência de interesse-utilidade de agir. Não concordando o juiz, poderá se socorrer do previsto na última parte do art. 28 do CPP e, assim, remeter o inquérito ou as peças de investigação ao procurador-geral de Justiça, que “oferecerá a denúncia, designará outro órgão para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender”.
Entendimentos contrários ao acima exposto terminam por afrontar princípios processuais como, dentre outros, o da instrumentalidade e da efetividade. De certa forma, pode-se concluir que processos deflagrados em condições ensejadoras do perdão judicial — ou seja, em que não há interesse de agir devido à inutilidade do processo — são natimortos. Por essa razão, acabam determinando gastos desnecessários para o Estado e maior sobrecarga da justiça penal, já tão criticada em razão de um alardeado acúmulo de processos. Ante tal consideração, pode-se, em última instância, afirmar que a tese ora desenvolvida contribui reflexamente para a efetiva realização do disposto e programado no art. 5º, LXXVIII, segundo o qual “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
3. Considerações finais
A crise de legitimidade atravessada pelo sistema penal reclama intervenções certas por parte dos operadores do Direito no sentido de adequar o funcionamento dessa estrutura aos princípios constitucionais e interesse público. Conforme exposto, o legalismo de formalidades absolutas já não condiciona a atuação de advogados, promotores ou juízes, aos quais hoje cabe a função maior de amoldar a lei aos ideais constitucionais e à dinâmica social, sempre visando à efetivação da justiça. O pós-positivismo deu vida à lei morta que caracterizava o positivismo jurídico, animando o Direito com um espírito transformador.
“Essa transformação da ciência jurídica, ao dar ao jurista uma tarefa de construção — e não mais de simples revelação —, confere-lhe maior dignidade e responsabilidade, já que dele se espera uma atividade essencial para dar efetividade aos planos da Constituição, ou seja, aos projetos do Estado e às aspirações da sociedade” (MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. Volume 1: Teoria Geral do Processo. São Paulo: RT, 2006, p. 46).
Se tudo é proibido, nada é proibido, motivo pelo qual o excesso de leis incriminadoras explícito ao ponto de revelar a ineficácia do sistema penal brasileiro exige uma postura crítica dos juristas, que são responsáveis pelo resgate de sua legitimidade, logo, de sua credibilidade(8). Seja pelas vias processuais, seja através da aplicação de princípios próprios ao direito material, deve-se lutar pela mínima intervenção penal, a cujos drásticos efeitos somente devam ser submetidos casos que representem violação a interesses essenciais à vida em sociedade, considerada sua condição de ultima ratio. E, dentre esses, certamente não se inclui o caso dos agentes de cujas condutas decorrem efeitos tão danosos a si próprios a ponto de tornar inútil a punição estatal(9).
Nesses moldes, retomando o fio processual da questão inicialmente proposta, fecha-se o estudo com o devido destaque à importância da apuração da utilidade do processo enquanto condicionante da legitimidade da persecutio criminis in judicio. Um processo que não é meio eficaz ao alcance dos objetivos que o justificam é inútil e, por conseguinte, jamais será legítimo. Contemporaneamente pode-se afirmar, portanto, que o interesse de agir é verdadeira condição constitucionalizante da ação penal, vez que manifesta o caráter instrumental do processo na conformação do Direito aos ideais constitucionais e à dinâmica social. Harmoniza, assim, a mútua interferência entre essas inseparáveis instâncias, caracterizando-se como uma das formas essenciais à garantia de uma sintonia entre o Direito e o compasso de evolução da sociedade.
Notas
(1) Expressão cunhada por Max Weber.
(2) YOUNG, Jock. A Sociedade Excludente: Exclusão Social, Criminalidade e Diferença na Modernidade Recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
(3) WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
(4) OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 6ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 85.
(5) Não se cuida aqui, como se pode verificar, da forma de perdão judicial de que trata a Lei nº 9807/99, em seu art. 13.
(6) DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 13ª ed., São Paulo: Malheiros, 2008.
(7) JESUS, Damásio E. de apud GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 6ª ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 774. Por esse mesmo fundamento, ainda com Damásio, acompanhado por Luiz Flávio Gomes, Maurício Antônio Ribeiro Lopes e Rogério Greco (GRECO, ob. cit., p. 774), também se entende pela extensão das hipóteses em que cabível o perdão judicial a práticas que se enquadrem nos arts. 302 e 303 do CTB. Aliás, transferindo-se a abordagem da questão para o âmbito das condições da ação — portanto, para a atuação ministerial —, torna-se até mesmo desnecessária tal colocação, pois, sob tal enfoque, dispensável seria uma expressa autorização legal para cada caso em que possível a aplicação do perdão, bastando a previsão da possibilidade de se deixar de aplicar a pena em razão de sua inutilidade, para o que bastam os moldes dispostos no art. 121, § 5º, do CP.
(8) Há quem cogite que o Brasil já tenha superado a marca de 5.000 condutas tipificadas.
(9) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas: A Perda da Legitimidade do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
Domingos Barroso da Costa
Bacharel em Direito pela UFMG; especialista em Criminologia pelo Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas/Acadepol-MG e em Direito Público, pela Unigranrio/Praetorium; mestrando em Psicologia pela PUC/Minas
Cláusula inadmissível no indulto natalino.
Cláusula inadmissível no indulto natalino
Alberto Silva Franco
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo
FRANCO, Alberto Silva. Cláusula inadmissível no indulto natalino. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 195, p. 3, fev. 2009.
O § 4º do art. 33 da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, autoriza a aplicação de causa redutora de pena, variável entre um sexto e dois terços, quer em relação à pena privativa de liberdade, quer no tocante à pena pecuniária, aos infratores do caput e do § 1º do art. 33 do diploma legal já referido, desde que o agente, primário e de bons antecedentes, não se dedique a atividades criminosas, nem integre organização criminosa. Reunidos os requisitos especificados, não há como fugir à diminuição punitiva, que se traduz, então, num verdadeiro direito do próprio acusado. O texto legal não exclui, em momento algum, da menor incidência punitiva, o agente que tenha atuado como traficante. Sob esse ângulo, a direta remissão ao caput e ao § 1º do art. 33 da Lei 11.343/2006 significa a confirmação de que se revela absolutamente indiferente, para a causa de diminuição de pena, a categorização do réu como traficante ou não. Um e outro são, em verdade, destinatários do § 4º do art. 33.
Ora, em destoante conflito com esse entendimento, o Decreto n. 6.706, de 22 de dezembro de 2008, publicado no DOU do dia imediato, contém regra — inexistente, por sinal, no projeto de decreto formulado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) — que exige, no caso do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 que o condenado penalmente favorecido só poderá ser indultado se ficar demonstrada sua condição de não-traficante. Trata-se de cláusula que extravasa os poderes constitucionais do Presidente da República.
Antes de tudo porque o inciso XII do art. 84 da Constituição Federal, ao atribuir ao Presidente da República a competência para conceder o indulto ou a comutação de penas, não lhe outorgou, ao mesmo tempo, o poder de alargar ou de restringir, por via direta ou reflexa, tipologias penais. Destarte, a alteração de texto penal, por ato do Poder Executivo, retrata uma insuportável ofensa à estrita legalidade penal. No caso em exame, a incidência da causa de diminuição do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 não estava subordinada à prévia rotulação do agente como traficante ou não. Os requisitos exigíveis eram outros e, com fundamento neles, a autoridade judiciária poderia ou não efetuar a diminuição punitiva. Não tem, portanto, pertinência negar-se, agora, o indulto ou a comutação de pena, sob o argumento de que a conduta típica do condenado configurava a prática da mercancia.
Depois porque, muito embora possam ser excluídos do decreto de indulto ou de comutação determinados tipos penais, força é convir que esse decreto não pode trazer distinções no interior de uma só e mesma figura criminosa. No Decreto 6.706/2008, os benefícios penais não alcançaram expressamente os crimes hediondos e assemelhados, mas, nessa última categoria, se abriu uma exceção, em relação ao crime do tráfico ilícito de droga, para efeito de admissão do indulto ou da comutação, nas hipóteses dos §§ 2º a 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006. No caso em tela, interessa apenas a hipótese do § 4º porque exclusivamente a ela foi aderida a cláusula desde que a conduta típica não tenha configurado a prática da mercancia. Assim, abriu-se uma nova exceção no raio circunscrito de outra exceção. E esta segunda exceção objetiva separar, de forma nítida, as figuras do traficante e do não-traficante, distinção que não se incluía entre os objetivos do legislador penal na formulação do referido o § 4º. O Decreto 6.706/2008 afronta, portanto, a regra da isonomia na medida em que, para a concessão do indulto ou da comutação de penas, desiguala situações fáticas que o legislador penal não teve a preocupação de distinguir.
Além disso, é inquestionável a incidência do indulto ou da comutação na fase de execução da pena e não teria cabimento, nessa fase, a reabertura do juízo de conhecimento para efeito de verificar se o agente praticara ou não atos comprovadores de tráfico ilícito de drogas. Para aferir-se a realização de tais atos, seria mister analisar os dados probatórios, o que significaria uma total subversão do processo penal, a dano do justo processo legal. Assim, se o condenado obteve a causa redutora de pena, com base no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, não terá nenhum sentido, para efeito de concessão do indulto ou da comutação que o juiz da execução penal investigue a conduta típica do condenado para verificar se pôs em prática, ou não, atos próprios do tráfico de drogas.
Em resumo, por qualquer ângulo que se enfoque a questão, a esdrúxula cláusula desde que a conduta típica não tenha configurado a prática de mercancia é de todo inadmissível, não comportando atendimento na execução penal, por significar lesão aberta a princípios constitucionais. Destarte, nenhuma restrição, por parte do juízo da execução penal, pode ser admitida em relação a condenados favorecidos pela causa de diminuição do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006.
Alberto Silva Franco
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo
Alberto Silva Franco
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo
FRANCO, Alberto Silva. Cláusula inadmissível no indulto natalino. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 195, p. 3, fev. 2009.
O § 4º do art. 33 da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, autoriza a aplicação de causa redutora de pena, variável entre um sexto e dois terços, quer em relação à pena privativa de liberdade, quer no tocante à pena pecuniária, aos infratores do caput e do § 1º do art. 33 do diploma legal já referido, desde que o agente, primário e de bons antecedentes, não se dedique a atividades criminosas, nem integre organização criminosa. Reunidos os requisitos especificados, não há como fugir à diminuição punitiva, que se traduz, então, num verdadeiro direito do próprio acusado. O texto legal não exclui, em momento algum, da menor incidência punitiva, o agente que tenha atuado como traficante. Sob esse ângulo, a direta remissão ao caput e ao § 1º do art. 33 da Lei 11.343/2006 significa a confirmação de que se revela absolutamente indiferente, para a causa de diminuição de pena, a categorização do réu como traficante ou não. Um e outro são, em verdade, destinatários do § 4º do art. 33.
Ora, em destoante conflito com esse entendimento, o Decreto n. 6.706, de 22 de dezembro de 2008, publicado no DOU do dia imediato, contém regra — inexistente, por sinal, no projeto de decreto formulado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) — que exige, no caso do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 que o condenado penalmente favorecido só poderá ser indultado se ficar demonstrada sua condição de não-traficante. Trata-se de cláusula que extravasa os poderes constitucionais do Presidente da República.
Antes de tudo porque o inciso XII do art. 84 da Constituição Federal, ao atribuir ao Presidente da República a competência para conceder o indulto ou a comutação de penas, não lhe outorgou, ao mesmo tempo, o poder de alargar ou de restringir, por via direta ou reflexa, tipologias penais. Destarte, a alteração de texto penal, por ato do Poder Executivo, retrata uma insuportável ofensa à estrita legalidade penal. No caso em exame, a incidência da causa de diminuição do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 não estava subordinada à prévia rotulação do agente como traficante ou não. Os requisitos exigíveis eram outros e, com fundamento neles, a autoridade judiciária poderia ou não efetuar a diminuição punitiva. Não tem, portanto, pertinência negar-se, agora, o indulto ou a comutação de pena, sob o argumento de que a conduta típica do condenado configurava a prática da mercancia.
Depois porque, muito embora possam ser excluídos do decreto de indulto ou de comutação determinados tipos penais, força é convir que esse decreto não pode trazer distinções no interior de uma só e mesma figura criminosa. No Decreto 6.706/2008, os benefícios penais não alcançaram expressamente os crimes hediondos e assemelhados, mas, nessa última categoria, se abriu uma exceção, em relação ao crime do tráfico ilícito de droga, para efeito de admissão do indulto ou da comutação, nas hipóteses dos §§ 2º a 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006. No caso em tela, interessa apenas a hipótese do § 4º porque exclusivamente a ela foi aderida a cláusula desde que a conduta típica não tenha configurado a prática da mercancia. Assim, abriu-se uma nova exceção no raio circunscrito de outra exceção. E esta segunda exceção objetiva separar, de forma nítida, as figuras do traficante e do não-traficante, distinção que não se incluía entre os objetivos do legislador penal na formulação do referido o § 4º. O Decreto 6.706/2008 afronta, portanto, a regra da isonomia na medida em que, para a concessão do indulto ou da comutação de penas, desiguala situações fáticas que o legislador penal não teve a preocupação de distinguir.
Além disso, é inquestionável a incidência do indulto ou da comutação na fase de execução da pena e não teria cabimento, nessa fase, a reabertura do juízo de conhecimento para efeito de verificar se o agente praticara ou não atos comprovadores de tráfico ilícito de drogas. Para aferir-se a realização de tais atos, seria mister analisar os dados probatórios, o que significaria uma total subversão do processo penal, a dano do justo processo legal. Assim, se o condenado obteve a causa redutora de pena, com base no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, não terá nenhum sentido, para efeito de concessão do indulto ou da comutação que o juiz da execução penal investigue a conduta típica do condenado para verificar se pôs em prática, ou não, atos próprios do tráfico de drogas.
Em resumo, por qualquer ângulo que se enfoque a questão, a esdrúxula cláusula desde que a conduta típica não tenha configurado a prática de mercancia é de todo inadmissível, não comportando atendimento na execução penal, por significar lesão aberta a princípios constitucionais. Destarte, nenhuma restrição, por parte do juízo da execução penal, pode ser admitida em relação a condenados favorecidos pela causa de diminuição do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006.
Alberto Silva Franco
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009
Falta de estrutura transforma Maria da Penha em "faz-de-conta".
Falta de estrutura transforma Maria da Penha em "faz-de-conta", alerta Juíza
Com a atual estrutura existente em Porto Alegre, agressores e vítimas não recebem atendimento e tratamento adequado e um grande número de infrações penais acaba prescrevendo, fazendo com que a Lei Maria da Penha seja um “faz-de-conta”, pois na sistemática atual cada instituição “faz o seu papel”, mas pouco ou nada muda na prática. Essa é a avaliação da Juíza Osnilda Pisa, do Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.
Para sanar esse problema, a magistrada defende a criação de um Centro Integrado de Atendimento com psicólogos, assistentes sociais e defensores públicos para a triagem das situações com os encaminhamentos necessários de cada caso. Afirma que é preciso diferenciar os casos de saúde pública, de família e os de polícia, e considera que o ingresso de toda essa demanda via Delegacia de Polícia inviabiliza o objetivo da própria Lei Maria da Penha.
Mau uso da Lei
A magistrada relata que muitas mulheres procuram o Juizado não por terem sido vítimas de violência, mas em busca de benefícios financeiros através das medidas protetivas, especialmente a que afasta o denunciado do lar. Desejam a separação, mas não querem realizar a separação de bens e acabam frustradas quando têm seu pedido negado. Algumas também utilizam a medida como uma forma de chantagear o companheiro, com fins que vão desde reatar o relacionamento a conseguir benefícios diversos.
A Juíza Osnilda Pisa destaca que casos como esses revelam a concepção errada que muitas pessoas têm sobre a Lei. Salienta que a determinação de afastamento do suposto agressor do lar é uma medida excepcional, visando unicamente preservar a integridade física e psicológica da vítima. Nos casos em que é concedida medida protetiva de proibição de determinadas condutas, como aproximação ou manter contato por telefone, tem sido adotada a reciprocidade da medida, ficando também a mulher proibida de praticar conduta idêntica.
Centro Integrado de Atendimento
A magistrada conta que a maioria das mulheres ao procurar a delegacia especializada para registrar ocorrência – que posteriormente vai ser encaminhada ao Juizado – está abalada emocionalmente. Ressalta que as policiais, apesar da dedicação, não estão habilitadas para acolher, acalmar e orientar as vítimas, encaminhando os casos adequadamente, até porque não é essa a função da polícia.
Aponta que muitas desejam apenas a separação, ou internação para filhos ou marido dependentes de drogas ou com problemas de alcoolismo ou psíquicos, situações que não precisam de registro de ocorrência policial. Com a disponibilização de Centro Integrado que proporcionasse auxílio de psicólogos, Assistentes Sociais e Defensores Públicos e fizesse a triagem dos casos - antes do registro de ocorrência junto à Polícia –, as vítimas desde logo receberiam orientação e os encaminhamentos para a efetiva solução do problema que não precisam da intervenção policial. Isso evitaria sobrecarga do serviço policial e permitiria o adequado atendimento das situações que efetivamente demandam intervenção policial e da Justiça Criminal, no caso do Juizado de Violência Doméstica.
Atualmente tramitam cinco mil ações e são realizadas em média 24 audiências por dia. A Juíza Osnilda Pisa afirma que se fossem recebidas apenas as situações que efetivamente competem ao Juizado da Violência Doméstica, seria possível soluções mais céleres.
Outro efeito do grande volume de ocorrências, segundo a magistrada, é a dificuldade de a Delegacia realizar uma investigação aprofundada e enviar os inquéritos dentro do prazo de 30 dias. Parte dos inquéritos policiais chega ao Juizado transcorridos dois anos da data do fato, prazo prescricional da maioria dos crimes e contravenções que envolvem os casos de violência doméstica.
Falta de leitos para tratamento
A Juíza ressalta que muitos casos não são “de polícia”, mas de tratamento por dependência de drogas, especialmente de álcool ou crack, e de transtornos psiquiátricos. No entanto, a rede de saúde não possui estrutura para atendimento e leitos para internação.
Grande parte dos usuários de drogas é enviada ao posto de saúde PAM-3, na Vila Cruzeiro, para serem diagnosticados e internados. No entanto, acabam recendo alta após 24 ou 48 horas, devido à escassez de vagas. Como alternativa, a magistrada tem enviado os presos em flagrante – que descumpriram medida - para o Instituto Psiquiátrico Forense, local que, no entanto, não realiza a desintoxicação com o uso de medicamentos.
Diante disso, ressalta a magistrada, “resta o encaminhamento aos grupos de auto-ajuda, como Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos e Amor-Exigente, que muito têm ajudado a prevenir a reiteração da violência. No entanto, em muitos casos, sem a prévia desintoxicação ou o tratamento de doenças comórbidas, como depressão, o grupo é insuficiente”.
Fonte: TJRS
Com a atual estrutura existente em Porto Alegre, agressores e vítimas não recebem atendimento e tratamento adequado e um grande número de infrações penais acaba prescrevendo, fazendo com que a Lei Maria da Penha seja um “faz-de-conta”, pois na sistemática atual cada instituição “faz o seu papel”, mas pouco ou nada muda na prática. Essa é a avaliação da Juíza Osnilda Pisa, do Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.
Para sanar esse problema, a magistrada defende a criação de um Centro Integrado de Atendimento com psicólogos, assistentes sociais e defensores públicos para a triagem das situações com os encaminhamentos necessários de cada caso. Afirma que é preciso diferenciar os casos de saúde pública, de família e os de polícia, e considera que o ingresso de toda essa demanda via Delegacia de Polícia inviabiliza o objetivo da própria Lei Maria da Penha.
Mau uso da Lei
A magistrada relata que muitas mulheres procuram o Juizado não por terem sido vítimas de violência, mas em busca de benefícios financeiros através das medidas protetivas, especialmente a que afasta o denunciado do lar. Desejam a separação, mas não querem realizar a separação de bens e acabam frustradas quando têm seu pedido negado. Algumas também utilizam a medida como uma forma de chantagear o companheiro, com fins que vão desde reatar o relacionamento a conseguir benefícios diversos.
A Juíza Osnilda Pisa destaca que casos como esses revelam a concepção errada que muitas pessoas têm sobre a Lei. Salienta que a determinação de afastamento do suposto agressor do lar é uma medida excepcional, visando unicamente preservar a integridade física e psicológica da vítima. Nos casos em que é concedida medida protetiva de proibição de determinadas condutas, como aproximação ou manter contato por telefone, tem sido adotada a reciprocidade da medida, ficando também a mulher proibida de praticar conduta idêntica.
Centro Integrado de Atendimento
A magistrada conta que a maioria das mulheres ao procurar a delegacia especializada para registrar ocorrência – que posteriormente vai ser encaminhada ao Juizado – está abalada emocionalmente. Ressalta que as policiais, apesar da dedicação, não estão habilitadas para acolher, acalmar e orientar as vítimas, encaminhando os casos adequadamente, até porque não é essa a função da polícia.
Aponta que muitas desejam apenas a separação, ou internação para filhos ou marido dependentes de drogas ou com problemas de alcoolismo ou psíquicos, situações que não precisam de registro de ocorrência policial. Com a disponibilização de Centro Integrado que proporcionasse auxílio de psicólogos, Assistentes Sociais e Defensores Públicos e fizesse a triagem dos casos - antes do registro de ocorrência junto à Polícia –, as vítimas desde logo receberiam orientação e os encaminhamentos para a efetiva solução do problema que não precisam da intervenção policial. Isso evitaria sobrecarga do serviço policial e permitiria o adequado atendimento das situações que efetivamente demandam intervenção policial e da Justiça Criminal, no caso do Juizado de Violência Doméstica.
Atualmente tramitam cinco mil ações e são realizadas em média 24 audiências por dia. A Juíza Osnilda Pisa afirma que se fossem recebidas apenas as situações que efetivamente competem ao Juizado da Violência Doméstica, seria possível soluções mais céleres.
Outro efeito do grande volume de ocorrências, segundo a magistrada, é a dificuldade de a Delegacia realizar uma investigação aprofundada e enviar os inquéritos dentro do prazo de 30 dias. Parte dos inquéritos policiais chega ao Juizado transcorridos dois anos da data do fato, prazo prescricional da maioria dos crimes e contravenções que envolvem os casos de violência doméstica.
Falta de leitos para tratamento
A Juíza ressalta que muitos casos não são “de polícia”, mas de tratamento por dependência de drogas, especialmente de álcool ou crack, e de transtornos psiquiátricos. No entanto, a rede de saúde não possui estrutura para atendimento e leitos para internação.
Grande parte dos usuários de drogas é enviada ao posto de saúde PAM-3, na Vila Cruzeiro, para serem diagnosticados e internados. No entanto, acabam recendo alta após 24 ou 48 horas, devido à escassez de vagas. Como alternativa, a magistrada tem enviado os presos em flagrante – que descumpriram medida - para o Instituto Psiquiátrico Forense, local que, no entanto, não realiza a desintoxicação com o uso de medicamentos.
Diante disso, ressalta a magistrada, “resta o encaminhamento aos grupos de auto-ajuda, como Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos e Amor-Exigente, que muito têm ajudado a prevenir a reiteração da violência. No entanto, em muitos casos, sem a prévia desintoxicação ou o tratamento de doenças comórbidas, como depressão, o grupo é insuficiente”.
Fonte: TJRS
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
Controle de Convencionalidade: STF Revolucionou Nossa Pirâmide Jurídica.
Controle de Convencionalidade: STF Revolucionou Nossa Pirâmide Jurídica
Luiz Flávio Gomes
Doutor em Direito Penal. Mestre em Direito Penal. Professor de Direito Penal. Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001)
No dia 03.12.08 foi proclamada, pelo Pleno do STF (HC 87.585-TO e RE 466.343-SP), uma das decisões mais históricas de toda sua jurisprudência. Finalmente nossa Corte Suprema reconheceu que os tratados de direitos humanos valem mais do que a lei ordinária. Duas correntes estavam em pauta: a do Min. Gilmar Mendes, que sustentava o valor supralegal desses tratados, e a do Min. Celso de Mello, que lhes conferia valor constitucional. Por cinco votos a quatro, foi vencedora (por ora) a primeira tese.
Caso algum tratado venha a ser devidamente aprovado pelas duas casas legislativas com quorum qualificado (de três quintos, em duas votações em cada casa) e ratificado pelo Presidente da República, terá ele valor de Emenda Constitucional (CF, art. 5º, § 3º, com redação dada pela EC 45/2004). Fora disso, todos os (demais) tratados de direitos humanos vigentes no Brasil contam com valor supralegal (ou seja: valem mais do que a lei e menos que a Constituição). Isso possui o significado de uma verdadeira revolução na pirâmide jurídica de Kelsen, que era composta (apenas) pelas leis ordinárias (na base) e a Constituição (no topo).
Conseqüência prática: doravante toda lei (que está no patamar inferior) que for contrária aos tratados, não possui validade. Como nos diz Ferrajoli, são vigentes, mas não possuem validade (isso corresponde, no plano formal, à derrogação da lei). O STF, no julgamento citado, sublinhou o não cabimento (no Brasil) de mais nenhuma hipótese de prisão civil do depositário infiel, porque foram "derrogadas" (pelo art. 7º, 7, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos) todas as leis ordinárias em sentido contrário ao tratado internacional.
Dupla compatibilidade vertical: toda lei ordinária, doravante, para ser válida, deve (então) contar com dupla compatibilidade vertical, ou seja, deve ser compatível com a Constituição brasileira assim como com os tratados de direitos humanos. Se a lei (de baixo) entrar em conflito (isto é: se for antagônica) com qualquer norma de valor superior (Constituição ou tratados), não vale (não conta com eficácia prática). A norma superior irradia uma espécie de "eficácia paralisante" da norma inferior (como diria o Min. Gilmar Mendes).
Duplo controle de verticalidade: do ponto de vista jurídico a conseqüência natural do que acaba de ser exposto é que devemos distinguir (doravante) com toda clareza o controle de constitucionalidade do controle de convencionalidade. No primeiro é analisada a compatibilidade do texto legal com a Constituição. No segundo o que se valora é a compatibilidade do texto legal com os tratados. Todas as vezes que a lei ordinária atritar com os tratados ou com a Constituição, não vale.
Tese de doutoramento de Valerio Mazzuoli: no Brasil quem defendeu, pela primeira vez, a teoria do controle de convencionalidade foi Valério Mazzuoli, em sua tese de doutoramento (sustentada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul-Faculdade de Direito, em Porto Alegre, em 2008).
Vale a pena destacar alguns trechos da sua obra: [pág. 227] "Para realizar o controle de convencionalidade das leis os tribunais locais não requerem qualquer autorização internacional. Tal controle passa, doravante, a [pág. 228] ter também caráter difuso, a exemplo do controle difuso de constitucionalidade, onde qualquer juiz ou tribunal pode se manifestar a respeito. À medida que os tratados forem sendo incorporados ao direito pátrio os tribunais locais – estando tais tratados em vigor no plano internacional – podem, desde já e independentemente de qualquer condição ulterior, compatibilizar as leis domésticas com o conteúdo dos tratados (de direitos humanos ou comuns) vigentes no país. Em outras palavras, os tratados internacionais incorporados ao direito brasileiro passam a ter eficácia paralisante (para além de derrogatória) das demais espécies normativas domésticas, cabendo ao juiz coordenar essas fontes (internacionais e internas) e escutar o que elas dizem. Mas, também, pode ainda existir o controle de convencionalidade concentrado no Supremo Tribunal Federal, como abaixo se dirá, na hipótese dos tratados (neste caso, apenas os de direitos humanos) internalizados pelo rito do art. 5º, § 3º da Constituição."
[Pág. 235]: "Ora, se a Constituição possibilita sejam os tratados de direitos humanos alçados ao patamar constitucional, com equivalência de emenda, por questão de lógica deve também garantir-lhes os meios que garante a qualquer norma constitucional ou emenda de se protegerem contra investidas não autorizadas do direito infraconstitucional."
"Quanto aos tratados de direitos humanos não internalizados pelo quorum qualificado, passam eles a ser paradigma apenas do controle difuso de convencionalidade. Portanto, para nós – contrariamente ao que pensa José Afonso da Silva – não se pode dizer que as antinomias entre os tratados de direitos humanos não incorporados pelo referido rito qualificado e as normas infraconstitucionais somente poderão ser resolvidas ‘pelo modo de apreciação da colidência entre lei especial e lei geral’".
Fazendo-se a devida adequação da inovadora doutrina de Valerio Mazzuoli com a histórica decisão do STF de 03.12.08 cabe concluir o seguinte:
a) os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil – independentemente de aprovação com quorum qualificado – possuem nível (apenas) supralegal (posição do Min. Gilmar Mendes, por ora vencedora);
b) admitindo-se a tese de que não contam com valor constitucional, eles servem de paradigma (apenas) para o controle (difuso) de convencionalidade (recorde-se que o controle concentrado no STF exige como fonte uma norma com status constitucional);
c) o controle difuso de convencionalidade desses tratados com status supralegal deve ser levantado em linha de preliminar, em cada caso concreto, cabendo ao juiz respectivo a análise dessa matéria antes do exame do mérito do pedido principal;
d) já os tratados aprovados pela maioria qualificada do § 3º do art. 5º da Constituição (precisamente porque contam com status constitucional) servirão de paradigma ao controle de constitucionalidade concentrado (perante o STF) ou difuso (perante qualquer juiz, incluindo-se os do STF);
e) em relação ao controle de constitucionalidade concentrado (só cabível, repita-se, quando observado o § 3º do art. 5º da CF) cabe admitir o uso de todos os instrumentos desse controle perante o STF, ou seja, é plenamente possível defender a possibilidade de ADIn (para eivar a norma infraconstitucional de inconstitucionacionalidade e inconvencionalidade), de ADECON (para garantir à norma infraconstitucional a compatibilidade vertical com a norma internacional com valor constitucional), ou até mesmo de ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) para exigir o cumprimento de um "preceito fundamental" encontrado em tratado de direitos humanos formalmente constitucional.
Luiz Flávio Gomes
Doutor em Direito Penal. Mestre em Direito Penal. Professor de Direito Penal. Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001)
No dia 03.12.08 foi proclamada, pelo Pleno do STF (HC 87.585-TO e RE 466.343-SP), uma das decisões mais históricas de toda sua jurisprudência. Finalmente nossa Corte Suprema reconheceu que os tratados de direitos humanos valem mais do que a lei ordinária. Duas correntes estavam em pauta: a do Min. Gilmar Mendes, que sustentava o valor supralegal desses tratados, e a do Min. Celso de Mello, que lhes conferia valor constitucional. Por cinco votos a quatro, foi vencedora (por ora) a primeira tese.
Caso algum tratado venha a ser devidamente aprovado pelas duas casas legislativas com quorum qualificado (de três quintos, em duas votações em cada casa) e ratificado pelo Presidente da República, terá ele valor de Emenda Constitucional (CF, art. 5º, § 3º, com redação dada pela EC 45/2004). Fora disso, todos os (demais) tratados de direitos humanos vigentes no Brasil contam com valor supralegal (ou seja: valem mais do que a lei e menos que a Constituição). Isso possui o significado de uma verdadeira revolução na pirâmide jurídica de Kelsen, que era composta (apenas) pelas leis ordinárias (na base) e a Constituição (no topo).
Conseqüência prática: doravante toda lei (que está no patamar inferior) que for contrária aos tratados, não possui validade. Como nos diz Ferrajoli, são vigentes, mas não possuem validade (isso corresponde, no plano formal, à derrogação da lei). O STF, no julgamento citado, sublinhou o não cabimento (no Brasil) de mais nenhuma hipótese de prisão civil do depositário infiel, porque foram "derrogadas" (pelo art. 7º, 7, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos) todas as leis ordinárias em sentido contrário ao tratado internacional.
Dupla compatibilidade vertical: toda lei ordinária, doravante, para ser válida, deve (então) contar com dupla compatibilidade vertical, ou seja, deve ser compatível com a Constituição brasileira assim como com os tratados de direitos humanos. Se a lei (de baixo) entrar em conflito (isto é: se for antagônica) com qualquer norma de valor superior (Constituição ou tratados), não vale (não conta com eficácia prática). A norma superior irradia uma espécie de "eficácia paralisante" da norma inferior (como diria o Min. Gilmar Mendes).
Duplo controle de verticalidade: do ponto de vista jurídico a conseqüência natural do que acaba de ser exposto é que devemos distinguir (doravante) com toda clareza o controle de constitucionalidade do controle de convencionalidade. No primeiro é analisada a compatibilidade do texto legal com a Constituição. No segundo o que se valora é a compatibilidade do texto legal com os tratados. Todas as vezes que a lei ordinária atritar com os tratados ou com a Constituição, não vale.
Tese de doutoramento de Valerio Mazzuoli: no Brasil quem defendeu, pela primeira vez, a teoria do controle de convencionalidade foi Valério Mazzuoli, em sua tese de doutoramento (sustentada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul-Faculdade de Direito, em Porto Alegre, em 2008).
Vale a pena destacar alguns trechos da sua obra: [pág. 227] "Para realizar o controle de convencionalidade das leis os tribunais locais não requerem qualquer autorização internacional. Tal controle passa, doravante, a [pág. 228] ter também caráter difuso, a exemplo do controle difuso de constitucionalidade, onde qualquer juiz ou tribunal pode se manifestar a respeito. À medida que os tratados forem sendo incorporados ao direito pátrio os tribunais locais – estando tais tratados em vigor no plano internacional – podem, desde já e independentemente de qualquer condição ulterior, compatibilizar as leis domésticas com o conteúdo dos tratados (de direitos humanos ou comuns) vigentes no país. Em outras palavras, os tratados internacionais incorporados ao direito brasileiro passam a ter eficácia paralisante (para além de derrogatória) das demais espécies normativas domésticas, cabendo ao juiz coordenar essas fontes (internacionais e internas) e escutar o que elas dizem. Mas, também, pode ainda existir o controle de convencionalidade concentrado no Supremo Tribunal Federal, como abaixo se dirá, na hipótese dos tratados (neste caso, apenas os de direitos humanos) internalizados pelo rito do art. 5º, § 3º da Constituição."
[Pág. 235]: "Ora, se a Constituição possibilita sejam os tratados de direitos humanos alçados ao patamar constitucional, com equivalência de emenda, por questão de lógica deve também garantir-lhes os meios que garante a qualquer norma constitucional ou emenda de se protegerem contra investidas não autorizadas do direito infraconstitucional."
"Quanto aos tratados de direitos humanos não internalizados pelo quorum qualificado, passam eles a ser paradigma apenas do controle difuso de convencionalidade. Portanto, para nós – contrariamente ao que pensa José Afonso da Silva – não se pode dizer que as antinomias entre os tratados de direitos humanos não incorporados pelo referido rito qualificado e as normas infraconstitucionais somente poderão ser resolvidas ‘pelo modo de apreciação da colidência entre lei especial e lei geral’".
Fazendo-se a devida adequação da inovadora doutrina de Valerio Mazzuoli com a histórica decisão do STF de 03.12.08 cabe concluir o seguinte:
a) os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil – independentemente de aprovação com quorum qualificado – possuem nível (apenas) supralegal (posição do Min. Gilmar Mendes, por ora vencedora);
b) admitindo-se a tese de que não contam com valor constitucional, eles servem de paradigma (apenas) para o controle (difuso) de convencionalidade (recorde-se que o controle concentrado no STF exige como fonte uma norma com status constitucional);
c) o controle difuso de convencionalidade desses tratados com status supralegal deve ser levantado em linha de preliminar, em cada caso concreto, cabendo ao juiz respectivo a análise dessa matéria antes do exame do mérito do pedido principal;
d) já os tratados aprovados pela maioria qualificada do § 3º do art. 5º da Constituição (precisamente porque contam com status constitucional) servirão de paradigma ao controle de constitucionalidade concentrado (perante o STF) ou difuso (perante qualquer juiz, incluindo-se os do STF);
e) em relação ao controle de constitucionalidade concentrado (só cabível, repita-se, quando observado o § 3º do art. 5º da CF) cabe admitir o uso de todos os instrumentos desse controle perante o STF, ou seja, é plenamente possível defender a possibilidade de ADIn (para eivar a norma infraconstitucional de inconstitucionacionalidade e inconvencionalidade), de ADECON (para garantir à norma infraconstitucional a compatibilidade vertical com a norma internacional com valor constitucional), ou até mesmo de ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) para exigir o cumprimento de um "preceito fundamental" encontrado em tratado de direitos humanos formalmente constitucional.
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