Nova Súmula Vinculante garante acesso aos autos
Por Alessandro Cristo
O Supremo Tribunal Federal editou, nesta segunda-feira (2/2), a segunda Súmula Vinculante que privilegia direitos de acusados em processos criminais. O Plenário da corte, por oito votos a dois, decidiu editar a 14ª Súmula Vinculante, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, que deixa claro o direito dos advogados e da Defensoria Pública a terem acesso a provas documentadas levantadas em inquéritos policiais, mesmo que ainda em andamento. O enunciado aprovado, que começa a vigorar assim que for publicado no Diário Oficial, é o seguinte: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo e irrestrito aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório, realizado por órgão de competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
A redação final resultou da união de pelo menos três propostas diferentes apresentadas pelos ministros, além da que foi levada pelo Conselho Federal da OAB, e das sugestões da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp) e do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). A possibilidade de se obter cópias dos inquéritos, o acesso aos autos também pela Defensoria Pública, a diferença entre provas já documentadas e as que ainda estão em fase de constituição e o caráter não administrativo dos processos de inquérito rechearam as discussões sobre o texto definitivo.
A vitória dos advogados se deu na primeira proposta de súmula vinculante feita por provocação (PSV 1), apresentada em setembro do ano passado pela OAB. A possibilidade foi aberta pela Emenda Constitucional 45/04, que permitiu a autoridades do Executivo, dos tribunais e de entidades de representatividade nacional provocar o Supremo a discutir a edição de súmulas vinculantes. Com os enunciados, o Judiciário e a administração pública devem seguir o entendimento dos ministros. Em agosto do ano passado, o Plenário aprovou a Súmula Vinculante 11, que proibiu o uso indiscriminado de algemas em prisões feitas pela Polícia, sob pena de nulidade das detenções.
O tema, discutido nesta segunda, foi levado pela Ordem à corte depois de diversos julgamentos em que os ministros concederam aos advogados o direito de tomar conhecimento das provas constituídas pelas autoridades policiais. Em sua sustentação oral, o advogado Alberto Zacharias Toron, secretário-geral adjunto da OAB e presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia da Ordem, destacou que todos os ministros já haviam dado decisões a respeito do tema. O ministro Marco Aurélio lembrou de pelo menos sete processos já julgados no STF — os Habeas Corpus 82.354, 87.827, 90.232, 88.190, 88.520, 92.331 e 91.684.
Toron ressaltou também que o interesse público não dá licença à autoridade pública para “aniquilar garantias do cidadão previstas na Constituição e nas leis”. Segundo ele, os casos julgados com frequência pelo STF mostram que a falta de conhecimento dos advogados quanto às investigações permite abusos. “Não se pode torturar invocando-se a supremacia do interesse público sobre o interesse privado do acusado na descoberta do crime”, afirmou. Ele completou, na sustentação, que o acesso ao inquérito atende aos princípios da ampla defesa e do devido processo legal desde o início das investigações e não somente depois de começada a ação penal. Como exemplos, o advogado citou os Habeas Corpus 82.354, 86.059 e 95.009, julgados no Supremo.
O vice-procurador-geral da República, Roberto Gurgel, argumentou que a edição da súmula nos termos da proposta da OAB tornaria impossíveis investigações principalmente de crimes financeiros, também chamados de colarinho branco. Para ele, a produção de provas depende de um processo demorado e de diligências que precisam ser feitas sem o conhecimento prévio dos investigados. Seu parecer foi integralmente contrário à proposta. “O acesso às informações poderá significar impunidade e inviabilização ao poder investigatório do Estado, com comprometimento da tutela penal”, disse Gurgel durante a sessão. Os ministros Ellen Gracie e Joaquim Barbosa deram razão ao entendimento e votaram contra a proposta.
Já os ministros Menezes Direito — relator da proposta —, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Carlos Britto, Cezar Peluso, Marco Aurélio, Celso de Mello e Gilmar Mendes foram favoráveis à ideia, mas sugeriram textos que foram além da proposta levada pela OAB.
Menezes Direito e Ellen Gracie lamentaram a pouca participação das entidades representativas no julgamento. Apesar da abertura de prazo para a inscrição de amicus curiae, nenhum órgão se manifestou. No entanto, a Associação Nacional dos Procuradores da República, a Aasp e o IDDD opinaram sobre a nova súmula. A ANPR foi contra a edição. Já a Aasp pediu a inclusão do acesso a cópias dos inquéritos no texto da norma, em sustentação oral feita pelo secretário Sérgio Rosenthal. O IDDD propôs a extensão do direito aos defensores públicos, em sugestão entregue pelos advogados Arnaldo Malheiros Filho, Flávia Rahal e Roberto Soares Garcia ao ministro Marco Aurélio. Para os ministros, a proposta da Aasp estava contemplada no texto. Já a do IDDD provocou a troca do termo “advogado” por “defensor”, ampliando à Defensoria Pública o acesso aos autos.
Questão polêmica
Em seu voto, Direito discordou do alerta feito pelo Ministério Público quanto aos embaraços à tutela penal. “A investigação se dá numa sociedade democrática e é incompatível com um processo sigiloso, à revelia do investigado”, disse. O acesso aos autos, segundo ele, pode evitar desequilíbrios surgidos de denúncias anônimas, por exemplo. O único argumento discutível seria o de que a questão envolve matéria processual e, portanto, não poderia ser alvo de súmula vinculante. Mas isso seria superado com a alegação de que o direito à defesa é cláusula fundamental da Constituição.
Já para a ministra Ellen Gracie a proposta sequer deveria ser votada, uma vez que havia dúvidas quanto à eficácia de uma súmula vinculante nesse caso. Segundo ela, o instituto não pode ter diferentes interpretações e é provável que haja divergências na sua aplicação pelas autoridades. “Sou uma velha defensora da súmula vinculante…” — ao que foi censurada pelos ministros e se corrigiu: “Sou uma antiga defensora da súmula, mas o objetivo do instrumento deve ser a administração judiciária, para limitar o excesso de recursos. Duvido que o tema tenha essa abrangência”.
O ministro Joaquim Barbosa apoiou a questão preliminar suscitada pela ministra. No mérito, ele também foi veementemente contrário à ideia. “Acho absolutamente inoportuna a consideração sobre a matéria”, disse, afirmando que a Constituição Federal e o Estatuto da OAB — a Lei 8.906/94 — já garantiram o direito requerido pelos advogados, exceto em relação a processos em sigilo. “Estamos deliberando no sentido de mudar essa lei e revogar o Estatuto da OAB”.
Os demais ministros reafirmaram a aceitação do pedido da OAB, por já haver diversos casos julgados e por se tratar de direito fundamental previsto na Constituição. “Tenho por oportuno, conveniente e necessário levantar a súmula vinculante”, disse o ministro Celso de Mello, contrariando literalmente as palavras de Joaquim Barbosa. Ele endureceu o discurso ao criticar as “decisões ilegais e inconstitucionais de juízes e tribunais de inferior jurisdição, além de deliberações com igual vício jurídico de autoridades policiais civis, militares e federais, que entendem que determinados direitos não devem ser observados”. Segundo o ministro, “tribunais, varas judiciais e repartições policiais não constituem um universo marginal, diferenciado”, referindo-se à relutância — que chamou de prepotente — dessas instâncias em “não observar orientação jurisprudencial já emanda por esta corte — como no HC 87.725 — e à regra escrita no Estatuto da Advocacia, que reconhece esse direito”.
“Investigação é devassa, cujo sigilo não é cabível num Estado Democrático de Direito”, completou a ministra Cármen Lúcia, com o que concordou o ministro Gilmar Mendes. “O homem não pode ser tranformado em um objeto de qualquer processo estatal”, disse o presidente do STF, defendendo a “ampla aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana no processo penal e nas investigações criminais”.
O ministro Lewandowski afirmou também que a súmula dará publicidade aos inquéritos, que são atos da administração pública. “Não será uma lei e, portanto, a autoridade poderá descumpri-la, de modo fundamentado, quando o interesse público assim o exigir”, justificou. Já quanto à proposta da Aasp, de se ressaltar o direito a cópias dos processos, o ministro afirmou que o Estatuto da OAB já abriu a possibilidade no artigo 7º, inciso XIV, o que não deveria ser repetido em súmula.
Embora favorável à súmula, o ministro Carlos Britto disse ser preciso diferenciar inquéritos de diligências feitas pela Polícia. “O conhecimento prévio das diligências compromete toda a linha da investigação”, alertou. Ele também destacou que os inquéritos não são processos administrativos ou judiciais, nos quais há direito à ampla defesa, previsto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal. Nesse sentido, o ministro Cezar Peluso lembrou que apenas provas já documentadas poderiam ser vistas pelos advogados. “A autoridade pode proferir um despacho determinando certas diligências, cujo conhecimento pode frustrá-lo”, disse.
Outra preocupação mostrada pelos ministros foi quanto a convocados pela Polícia a dar depoimentos, que ainda não eram alvo de investigação, mas que já eram considerados envolvidos. A questão foi levantada pelo ministro Marco Aurélio, que propôs uma redação contemplando a possibilidade e também a permissão de cópias dos inquéritos, além da menção à Defensoria Pública na súmula, e não só de advogados privados. No entanto, Marco Aurélio foi reticente em aprovar o acesso no caso de investigações feitas pelo Ministério Público, já que o Supremo ainda irá decidir sobre esse procedimento.
Repercussões gerais
A súmula invade competência do Legislativo, segundo o presidente da ANPR, Antonio Carlos Bigonha. “Nós encaramos isso com uma dupla gravidade, não só pelo desserviço que prestará na diminuição da corrupção no país, no sentido de inviabilizar a persecução penal, mas, sobretudo, por essa intervenção indevida do Poder Judiciário nos assuntos do Parlamento federal”, disse o presidente em nota.
Já a seccional paulista da OAB foi além das comemorações de caráter profissional. “Essa vitória deve-se, também, ao empenho do nosso conselheiro federal por São Paulo, Alberto Zacharias Toron, secretário-geral adjunto da OAB, que propôs e fez a sustentação oral junto ao Pleno do STF”, disse, também em nota, o presidente a OAB-SP, Luiz Flávio Borges D’Urso.
terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
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